O silencioso farfalhar do vestido não traduz o que acontecerá dali a instantes. O som do couro da sandália contra o piso de mosaico não ecoa, pois não era alto o suficiente. A desenvoltura com que anda pelos corredores, salas, aposentos, solaria e todo o restante do palácio não reflete o perigo iminente trazido por mãos pecaminosas que seguram a ameaça sob a forma de um cálice, um cálice ornamentado e belo. Um cálice que trazia nada mais do que um produto orgânico, natural, de origem vegetal… e totalmente letal. Passo após passo, volitando na calada da noite, no silêncio sepulcral da escuridão, sendo vigiada por olhos que nada fazem, bocas fechadas na discrição juramentada de não intervir, o fim encontrará a sua última linha escrita na vida de alguém. Em instantes, o conteúdo da taça será sorvido e nada mais aquele que saboreará o letal doce/amargo sabor da morte verá em sua vida que já estará finda.
E esta foi mais uma vítima de Locusta da Gália.
O que se sabe sobre Locusta da Gália pode ser escrito atrás de uma marca de ponto num texto em branco. Atribui-se que sua origem era a Gália, mas isso não é certo. Nada sobre a vida particular de Locusta da Gália é certo. Outra coisa que se sabe – ou melhor, se supõe – é que era uma mulher. E é tudo o que sabemos a respeito da vida particular de Locusta. Ah, o nome também não é certo. Chamemo-na Locusta da Gália por falta de nome melhor. Alguns a consideram como sendo uma das primeiras serial killers do mundo, mas eu não a vejo assim por motivos que vocês entenderão em breve.
Sua história foi mencionada por vários historiadores antigos, incluindo Tácito, Suetônio, Cássio Dio e Juvenal, mas muitos dos escritos desses autores são, na verdade, citações de obras de terceiros, pois, as originais se perderam no tempo. De qualquer forma, nas obras (cof cof) desses historiadores há descrições de pedaços da vida de Locusta, mas nem todo mundo concorda que seja um retrato fiel dela: uma mulher fria, calculista e indiferente, a qual se tornou extremamente habilidosa na prática do envenenamento, mas não de qualquer pessoa. Seus alvos eram bem definidos, e Locusta não fazia por prazer ou satisfação. Era paga para isso; então, não se pode dizer que era simplesmente uma serial killer, uma assassina em série;
Assassinatos na Roma Antiga não eram que possamos classificar como “algo fácil”, como podemos imaginar. Já começa que era meio difícil contratar um sniper. Entre várias razões para isso, talvez, só talvez, o que dificultasse fosse que a pólvora só seria inventada vários séculos depois. Efetivamente, o assassino tinha que chegar bem perto da vítima, muitas das vezes para usar um golpe de punhal, mas é preciso muita logística e planejamento para isso, além de várias pessoas ajudando. Se não acredita em mim, pergunte a Caio Júlio César.
Uma maneira eficiente e relativamente fácil de dar cabo a alguém sem que o assassino precisasse efetivamente estar junto da vítima era o envenenamento. Se o meliante conseguisse colocar veneno na comida ou bebida da vítima antes de ser servida, ele só precisaria contar com a distração (ou suborno) de alguém que chegasse próximo. Notadamente, essa pessoa seria algum escravo, que por algum motivo que me escapa tinha motivos para não gostar muito do seu senhor.
Venenos sempre foram eficientes, silenciosos e furtivos. Era muito difícil saber quando ia comer ou beber algo envenenado; e muitos morreram assim. Claro, se você era alguém importante, ia fazer de tudo para não ser envenenado, e obviamente esse tipo de pessoa não era pobre, já que pobres não morriam por venenos, mas de surra, assaltos mal ou bem-sucedidos (vai depender do ponto de vista), brigas em tavernas, mexer com a prima de alguém que chegou primeiro etc., e será logo por esfaqueamento, bordoada e coisas similares. Venenos eram mais sistemáticos e direcionados a quem tinha soldados à disposição, como pretores, magistrados e imperadores, claro.
A saída para impedir de ser morto envenenado era contratar provadores de comida. Ok, não era uma contratação. Era chamar um escravo e dizer “prova isso aqui” e ficar observando se o sujeito caía duro espumando pela boca. Então, começou uma espécie de “corrida armamentista” com os assassinos criando técnicas para matar o seu alvo e o alvo apelando para técnicas para impedirem de virar “homenageado” pelo próximo imperador, se é que me entendem.
Uma das ervas mais populares usadas para se criar venenos na Antiguidade era a beladona (Atropa belladonna). A beladona tem este nome porque na Itália as mulheres tinham o hábito de pingar extrato da planta nos olhos, de forma com quem as pupilas ficassem dilatadas e grandes, como artifício de beleza. Daí o nome: beladona = bella donna = bela mulher.
Sim, eu também acho maluquice pingar veneno nos olhos, mas não fui eu quem criou o mundo.
Muitos autores clássicos escreveram sobre a beladona, inclusive Pedanius Dioscorides (ou Discórides, aportuguesando), cognominado “Pai da Farmacognosia”. Discórides nasceu em Anazarbo, na Cilícia (região ao sul do platô central da Anatólia no território da moderna Turquia), no ano 40 E.C.. Ele foi médico, militar, farmacologista, botânico e autor do livro De Materia Medica (em grego Περὶ ὕλης ἰατρικῆς, “Sobre os Materiais Médicos”) – uma enciclopédia de 5 volumes sobre fitoterapia e substâncias medicinais relacionadas, no que hoje chamamos de “farmacopeia”. Esta obra foi referência por mais de 1.500 anos, e ainda hoje surpreende pela sua precisão em muitos detalhes.
Discórides compilou e descreveu o uso medicinal de aproximadamente 600 espécies vegetais distintas no “De Materia Medica”, além de ilustrá-las. Muitos dos nomes que ele introduziu ainda são utilizados na Botânica atualmente, e ele detalhou o emprego terapêutico de diversas plantas. Ele descrevia até qual quantidade cada erva poderia ser usada enquanto remédio e a partir de qual concentração se tornava tóxico, criando assim o que seria o mote da Farmacologia: a diferença entre o veneno e o remédio é a dosagem.
A beladona tinha mais duas companheiras: o meimendro e a mandrágora, que juntas eram chamadas “As 3 Ervas das Bruxas”, da Idade Média. Por sinal, as três eram muito bem conhecidas na Antiguidade por quem queria dar fim aos seus desafetos. No primeiro século, diversos autores registraram as doses necessárias para induzir alucinações, bem como para enviar alguém para o outro lado do rio Estige. Administrar venenos tornou-se um ofício que se aprendia como num cursinho pré-vestibular.
Estima-se (no chute, claro) que Locusta tenha nascido pelos idos do ano 20 E.C., na Gália, no que hoje é a atual França. Obviamente, levava uma vida rural e, com isso, aprendeu a manipular plantas para produzir remédios… e venenos. Nos anos 40 E.C., ela se mudou (ou foi levada como prisioneira, o que faria conforme quem está relatando) para Roma. Locusta acaba se estabelecendo (não se sabe como), tendo algum dinheiro, e mais uma vez vem a especulação que esse dinheiro havia vindo como pagamento por ser assassina por encomenda em sua terra natal.
Parando para frisar: não se tem nenhuma certeza destes relatos, e vamos continuar com um relato que também não há comprovação por nenhuma fonte histórica ou arqueológica. Continuemos.
Ao ir para a capital do Império, Locusta levou consigo diversos tipos de veneno, mas não se sabe ao certo como ela chegou lá. Alguns argumentam que ela fora levada como escrava após a campanha de Júlio César em sua terra natal, mas isso seria um pouquinho difícil, já que as Guerras Gálicas duraram de 58 a 52 A.E.C., quase 100 anos antes!
Em Roma, de alguma forma, Locusta se tornou famosa e ganhou o reconhecimento da corte imperial, circulando entre as figuras nobres da sociedade. Era frequentemente utilizada como uma arma, e há relatos de que Locusta tenha ajudado a Imperatriz Agripina a assassinar o Imperador Cláudio. O mais interessante é que, segundo contam, Locusta já estava presa, acusada de ter envenenado um certo alguém que ninguém soube dizer quem era. Por algum motivo, Agripina tomou-a como serva para si.
Agripina, a Jovem, era a sobrinha e quarta esposa do imperador Cláudio I. Por algum motivo, Agripina queria se livrar de Cláudio havia bastante tempo, e Locusta seria a sua grande ferramenta para garantir a ascensão de seu filho (de Agripina; se bem digo, melhor explico) ao Trono Imperial.
Por sinal, o filho não era de Cláudio, e o nome dessa criança era… Nero.
Como muitas mulheres romanas, esposas de altos escalões, Agripina foi uma das figuras femininas mais proeminentes de sua época, alguns dizendo que era o verdadeiro poder por detrás do trono. Em 54 E.C., ela conspirou com Locusta e a fez produzir um veneno que poderia ser usado para matar Cláudio, e o veneno que foi usado foi à base de beladona.
Como falei antes, ninguém queria ser morto envenenado (nem de nenhuma outra maneira, mas algumas são menos piores que outras). Para tanto, Cláudio tinha um escravo só para provar a sua comida; seu nome era Halotus. Entretanto, Agripina de alguma forma convenceu Halotus (posso bem imaginar como ela fez isso) a trair o imperador. O veneno foi borrifado em seus cogumelos e Halotus serviu a refeição a Cláudio, só que não deu certo. Por um lado, o veneno estava diluído e havia ainda outro motivo: após as refeições, Cláudio pedia para que seu médico Gaius Stertinius Xenophon (não confundir com Xenofonte, o historiador e militar grego nascido em 431 A.E.C.) lhe provocasse vômito ao passar uma pena no interior da sua garganta.
Na segunda tentativa, os algozes já estavam preparados. No dia seguinte, a comida foi preparada, provada, servida, saboreada e quando o médico de Cláudio foi provocar o vômito, selou o destino do imperador. O veneno tinha sido posto na pena, e foi isso que finalmente Cláudio I encontrou o seu fim, pois, Agripina e Locusta conseguiram assassinar o imperador, e Nero subiu ao poder. O ano era 54 E.C., aos 17 anos. Como podem imaginar, Halotus não teve final feliz.
Como bom italiano, Nero – que nasceu em Anzio – já previu o principal lema da máfia: Mantenha os amigos próximos, e os inimigos mais próximos ainda. Com isso, ele manteve Locusta perto de si, afinal se um imperador pôde ser morto por envenenamento, outro pode repetir a façanha. Não apenas isso, Nero ficou com os dois pés atrás no que dizia respeito ao filho de Cláudio, Britanniccus, já que nosso amigo tinha absoluta certeza de que Britannicus tentaria usurpar o trono.
Nero procurou a ajuda de Locusta, que estava na prisão por acusações de envenenamento em torno da morte de Cláudio, o que eu sinceramente duvido. Uma acusação desse tipo não levaria apenas a uma prisão qualquer. O desafortunado passaria por muitos maus bocados e seria sentenciado à morte. Levando em conta que o feito de Locusta beneficiou Nero, acho muito improvável que ele não tenha impedido que ela fosse presa ou ter ordenado a execução imediata. Eu não acredito em algum meio termo, mas você tem o direito de pensar o que quiser, já que não há informações claras a esse respeito, e olhem que Roma tinha uma burocracia muito bem-organizada.
Nero perdoou Locusta para que ela pudesse criar outra mistura venenosa para dar cabo de Britannicus, que era apenas um adolescente. Uma vez libertada, Locusta desenvolveu outra mistura fatal de beladona, desta vez incluindo outros ingredientes como arsênico e mandrágora. No entanto, de novo, algo deu errado e o veneno não estava forte o suficiente, e o que se supõe é que ela o havia deixado muito fraco de propósito para não dar na vista, e isso foi um problema para Locusta. Nero nunca foi conhecido por ser um sujeito paciente, ainda mais quando havia mortes a serem executadas. Locusta foi severamente punida por Nero em pessoa que a açoitou brutalmente por não ter envenenado Britannicus de forma eficiente. Nero até ameaçou sua execução se ela não tivesse sucesso em sua próxima tentativa.
Locusta então desenvolveu um segundo veneno muito mais forte para administrar ao jovem Britannicus, e a maneira que foi feita foi bem engenhosa: os romanos apreciavam muito o vinho, mas nem sempre ele puro. Alguns gostavam de mistura água morna ao vinho e beber a mistura assim.
Chegou a comida, Britannicus esperou o provador fazer o seu trabalho. O provador de comida mandou um joinha, pode comer, excelência. Veio o vinho, e ele foi provado. Ok, beleza, tudo em ordem. Mas Britannicus achou que estava muito calor para misturar o vinho com água quente. Mandou diluir em água fria. Era essa água que estava envenenado e o destino de Britannicus estava selado. O jovem Britannicus era epilético e sofria de convulsões frequentes. Nero usou este fato para esconder o real motivo do pobre coitado ter caído se sacudindo e espumando pela boca. Todo mundo acreditou, claro, e ninguém chegou perto de Britannicus até que o veneno fizesse seu trabalho muito bem feito. Algo de uma perfeição tão ímpar que Nero recompensou Locusta com suas próprias propriedades e servos, e a cobriu de presentes luxuosos.
Nero achou que tinha que ter um plantel de agentes capazes de saírem envenenando os desafetos, e nada melhor que do que mandar gente aprender com uma verdadeira mestra na arte de mandar indesejáveis bater as sandálias e irem para a terra dos pés juntos. O imperador então selecionou algumas pessoas e as mandou para fazerem uma espécie de SENAI de envenenamento, aprendendo o ofício com Locusta, que ganhou autorização imperial de fazer testes em animais e humanos.
Sim, na Roma Antiga era proibido fazer testes em animais e pessoas, principalmente vivos, o que foi um problema para Galeno, mas este não é importante neste relato e não será mais mencionado.
Acredita-se que Locusta tenha usado suas poções letais em escravos, criminosos condenados, indesejáveis em geral e animais que foram enviados para suas propriedades. Talvez seja por isso que Locusta seja considerada a primeira serial killer do mundo, mas ela não tinha modus operandi de um serial killer. Simplesmente não se importava, ainda mais que vivia numa época que boa parte não se importava com a vida alheia, literalmente. Para mim, quando muito, ela era apenas um sicário ou uma psicopata estilo Mengele ou os integrantes da Unidade 731 do Japão.
Sob a proteção de Nero, Locusta da Gália se tornou extremamente poderosa, temida e rica. Não se sabe o total das suas vítimas, e é bem possível que muitos que tiveram mortes por causas naturais tenham, na verdade, sido vítimas de Locusta. Pode ser também que aqueles cuja morte fora atribuída a Locusta terem morrido pela maneira displicente e por causa da vida desregrada da elite romana.
Entretanto, os dias de prestígio, poder, riqueza e glória de Locusta da Gália estavam contados. Quando os desmandos de Nero para com a elite romana chegaram no limite, o imperador foi aprisionado e obrigado a cometer suicídio enfiando uma adaga no pescoço, apesar de ter aventado morrer por envenenamento, fazendo uso de uma das misturas de Locusta da Gália. Era o ano de 68 E.C., e o reinado de Nero terminara ali, quando Galba veste a púrpura imperial, o que fez com que o passe livre de Locusta da Gália também terminasse.
Locusta já não contava mais com proteção imperial e Galba ordenou que ela fosse executada por suas ações e por sua lealdade a Nero. O historiador antigo Cássio Dio descreveu como, enquanto acorrentada, ela foi conduzida pela cidade ao lado de “outros da escória que vieram à tona nos dias de Nero”.
O legado de Locusta de Gália? Uma história pavorosa de uma época de terror. Época que foi substituída por outra época de terror e assim se continuou, com intrigas palacianas, assassinatos, brigas pelo poder, morte, riqueza, guerras e tudo de ruim que se possa imaginar quando há sede pelo poder.
E isso não acabou até hoje nem vai acabar tão cedo, já que mesmo nos tempos dos antigos romanos isso já era velho.