As chamas irrompem pelas construções. Séculos e séculos de sabedoria, cultura e conhecimento são gradativamente destruídos, enquanto lágrimas escorrem pelo rosto da Rainha. O horror chocante pela perda de saberes antigos corrói a alma de Cleópatra enquanto vê sua tão amada biblioteca arder em chamas e todos os documentos sendo devorados pelo fogo implacável, com o crepitar que mais parece um grito por socorro para depois toda construção sucumbir às chamas e tudo se perder definitivamente.
Uma visão atordoante, certo? Pois, é. Infelizmente (ou felizmente, vai depender do ponto de vista), isso não aconteceu. Sim, exatamente isso mesmo o que você leu! A história da destruição de todo saber da Biblioteca de Alexandria não passa de mito.
Vários autores, com o passar dos anos, das décadas e dos séculos, transformaram a Grande Biblioteca de Alexandria em algo como um imenso instituto de cultura e pesquisa, abrigando os maiores sábios da época, acolhendo o maior acervo de saber do mundo, com um número de livros e manuscritos estupendo. Bem, a realidade não é bem essa, embora o próprio Carl Sagan tenha falado exatamente isso na sua antológica série Cosmos.
Sagan mostrou a todos os seus espectadores como seria maravilhosa a Biblioteca de Alexandria, ainda mais porque “todo o conhecimento no mundo antigo estava dentro daquelas paredes de mármore”. Carl Sagan e uma miríade de escritores transformaram a palavra “Alexandria” não apenas num lugar, mas um sinônimo de saber. A maior biblioteca de todos os tempos seria um vasto oceano de conhecimento agora perdido para nós para sempre, tendo sido incinerada em uma grande pira de papiro, letras e pesquisas.
Mas não é verdade.
Aquilo que você conhece sobre a Biblioteca de Alexandria é um mito; ou, mais certamente, uma coleção de mitos e lendas que povoam o imaginário popular. A ideia de uma imensa biblioteca verdadeiramente universal, um único lugar onde todo o conhecimento do mundo foi armazenado, é mágica e poderosa. Algo beirando os melhores contos de Ficção Científica. Muita tinta foi derramada para falar da Grande Biblioteca, mas é preciso saber distinguir fato de ficção, e o que realmente sabemos sobre a Grande Biblioteca – tirando as partes românticas e claramente ficcionais, pode ser escrito atrás de um selo.
Tudo o que vem sendo dito acerca da Grande Biblioteca inspirou escritores e bibliotecários ao longo da História, mas, para ser justo, o que sabemos realmente da Grande Biblioteca? Já de início devemos dizer que não havia “A” Biblioteca de Alexandria. Na verdade, havia duas grandes bibliotecas, e elas nem eram bibliotecas per se, mas dentro de duas instituições. A primeira ficava no Museu de Alexandria (Μουσεῖον τῆς Ἀλεξανδρείας) e o Serapeu de Alexandria (Σεραπεῖον τῆς Ἀλεξανδρείας).
O termo “museu” não tinha o mesmo significado que tem hoje, apesar de ser muito parecido. O Museu – que doravante chamarei pelo seu nome em grego transliterado: Mouseion – era o Templo das Musas (Μοῦσαι), sendo que as musas eram deusas que inspiravam os homens no mundo das artes e sabemos por meio da Odisseia que eram nove, sendo elas responsáveis por inspirar nos campos da Eloquência e Poesia Heroica, História, Poesia Lírica e Erótica, Música (sim, o nome deriva de “musa”, mesmo), Tragédia, Poesia Sagrada, Dança, Comédia e Festividade, e Astronomia. Em outras palavras, escritores, dramaturgos, poetas, músicos etc. iam ao Mouseion para colocar oferendas e rezar para que as Musas lhes dessem a inspiração necessária.
Talvez o Mouseion fosse assim.
O Serapeu de Alexandria também não era uma biblioteca, apesar de ter uma lá dentro. O Serapeu era um templo dedicado ao deus Serápis, um deus grego com raízes na divindade egípcia Ápis, um deus com a forma de um touro sagrado adorado na região de Memphis (o do Egito, não o do Elvis). Ápis era um deus bem popular e venerado desde o Antigo Império do Egito – que durou entre 3200 e 2423 A.E.C –, que acabou sendo absorvido pelos gregos depois da conquista do Egito por Alexandre da Macedônia, em 334 A.E.C.
Planta de como deveria ser o Serapeu
A rigor, os gregos desdenhavam de deuses com a forma de animais, pois seu ideal de perfeição era antropocêntrico, com o Homem sendo o centro de tudo, mas como o culto a Ápis estava tão inserido na sociedade que antropomorfizaram-no e o adicionaram ao seu próprio panteão de deuses. Inicialmente, esse novo-velho deus recebeu o nome Aser-hapi (ou Osiris-Apis), que se tornou Serápis até que mais tarde foi tido como sendo o próprio Osíris que transferiu o seu ka (o espírito ou força-vital) para um touro.
Boi Ápis e o deus Serápis lado-a-lado
Dessa forma, tanto o Mouseion e o Serapeu eram, de fato, templos religiosos, que por um acaso tinham uma vasta coleção de textos de diferentes saberes. Não eram muito diferentes dos mosteiros cristãos surgidos séculos depois, com vários copistas, estudiosos, eruditos e cientistas, que também eram monges, cujas obras lá armazenadas não estavam ao alcance da população comum, já que seria desnecessário, posto que tanto na Antiga Alexandria quanto na Europa da Idade Média, o índice de analfabetismo era imenso, e se praticamente ninguém era capaz de ler, para que dar acesso a livros para essas pessoas?
Isso pode parecer um absurdo hoje, mas tenha em mente que muitos museus de hoje, institutos de pesquisas, arquivos gerais e bibliotecas dispõem de exemplares raríssimos, que não estão disponíveis à população em geral, e sim a pesquisadores e estes precisam comprovar sua necessidade para ter acesso a esses documentos. Por sorte, a Internet facilitou tudo isso, mas ainda estamos em alguns séculos antes da Era Cristã.
Uma das principais fontes a respeito da Biblioteca de Alexandria é o historiador romano Amiano Marcelino na sua coletânea História, com vários livros. O conceito “livro” nessa época era diferente do livro de hoje. Eram textos escritos em papiro ou pergaminho, tendo este último surgido bem mais tarde, lá pelos idos do século II A.E.C. Então, cada “livro” seria como um capítulo ou texto avulso, que era enrolado e preso com uma fita ou tira de couro, e armazenado em prateleiras. Às vezes, eram colocados textos juntos, o que formava um códex, os quais nem sempre continham textos relacionados entre si. Só muito mais tarde começaram a encadernar tudo junto e o livro como conhecemos hoje surgiu.
Amiano Marcelino nasceu em 330 E.C. e morreu em 393, tendo sido referenciado por Edward Gibbon como sendo “um guia preciso e fiel, que compôs a história de seu próprio tempo sem ceder aos preconceitos e paixões que geralmente afetam a mente de um contemporâneo”. Apesar da exatidão das informações de Amiano, Gibbon detestava seu estilo de escrita, chegando ao ponto de dizer que “o lápis grosseiro e indistinto de Amiano delineou suas figuras sangrentas com precisão tediosa e repugnante.”
Na sua obra História (escrita por volta de 380-390 E.C.), Amiano é bem claro sobre a existência da Biblioteca de Alexandria apontando dois fatos principais: havia uma enorme biblioteca e ela foi destruída. No seu Rerum Gestarum, Amiano Marcelino conta que:
(…) havia bibliotecas inestimáveis, e o testemunho unânime de registros antigos declara que 700.000 livros reunidos pela energia incessante dos reis ptolomaicos foram queimados na Guerra Alexandrina, quando a cidade foi saqueada pelo ditador César. |
Essa é uma das principais fontes? Históricas, sim. Mas veremos outras no decorrer do texto, e teremos um problema ao compará-las. Ao coletarmos de diferentes fontes, o que efetivamente sabemos?
Vamos desde muito antes. Alexandre da Macedônia conquistou parte do Mundo Antigo, blábláblá, você conhece esta história. Alexandre conquista o Egito em 334 A.E.C. (alguns situam em 332 A.E.C.); na mão grande, a propósito. Quando os egípcios o viram chegando com seu exército, deram uma de franceses e se renderam, consultando os oráculos. Alexandre foi ao Grande Templo, fez um sacrifício e orou em busca de revelação. Os sacerdotes consultaram os deuses e confirmaram que Alexandre era, sim, um deus-vivo e devia reinar sobre o Egito. Nenhuma gota de sangue foi derramada, o que comprova que os egípcios eram espertos e sabiam que a alternativa não seria nada agradável.
Sim, isso mesmo! Alexandre ganhou o Egito só colocando os pés lá, mas tendo a fama que ele tinha, não serei eu a criticar o pessoal do Nilo. Se você tem alguma dúvida, dá uma olhadinha no que ele fez na Pérsia, a ponto dos mais chegados a Dario I terem assassinado o rei e entregue o corpo de mão beijada a Alexandre, que ficou MUITO possesso com isso, diga-se de passagem, mandando matar todos os responsáveis, pois na sua visão, não era assim que um rei deveria ser tratado, embora eu ache que ele estava mandando um recado para os mais próximos a ele, caso tivessem uma ideia semelhante.
Alexandre fundou a cidade de Alexandria um ano depois, no que hoje é a baía de Abu Qir, e lá situou a capital do reino. Essa não foi a única Alexandria que ele fundou, a propósito, o que acaba sendo confuso, pois, em todos os lugares por onde passou, Alexandre fundou uma Alexandria e a colocava como capital do reino em questão, e dali ia para o próximo que iria conquistar.
Alexandre era esperto e sabia muito bem por que fundar uma cidade ali e mudar a capital do Egito para lá: era uma localização extremamente conveniente na foz do rio Nilo, com uma rota marítima vital, pois saía para a principal rota comercial da época: o Mar Mediterrâneo. Os navios atracavam no porto e a carga ia e vinha pelo Nilo, abastecendo uma rota comercial magnífica que atendia a todas as cidades do Egito banhadas pelo grande rio, e de lá para o mundo.
A cidade, pelas descrições sobreviventes que temos dela, era linda e grandiosa com edifícios de mármore e ruas largas dispostas, formando quarteirões quadrados e bem dimensionados, tendo o mesmo tamanho. Há quem diga que o próprio Alexandre, se não planejou a cidade sozinho, teve grande influência na disposição dos prédios. Mas lembrem-se: isso é o que se conta, porque mármore era muito caro naquela época, e muito dificilmente a cidade toda seria feita com esta rocha, ainda mais no Egito, que não tinha mármore, tendo que ser importado.
Mais certamente, os prédios deveriam ser de calcário, mesmo, e até isso não era igual, pois há diferentes tipos de calcário, e quanto mais claro, mais valorizado. O mármore é uma rocha metamórfica oriunda do calcário, mas para isso é preciso ação de formas metamorfoseantes intensas, as quais não estão presentes no Egito. Então, devemos ter cuidado com essas descrições, que apesar de tentarem traduzir a opulência de uma cidade grande, maravilhosa, cosmopolita e poderosa, deve-se guardar o que é fato e o que é ficção.
O império de Alexandre não demorou muito, posto que o Conquistador morreu no que se supõe ser o ano de 323 A.E.C., e seu império foi esfacelado e cada região acabou ficando com um e seus generais, cabendo a região do Egito ao seu general Ptolomeu, que assumiu com o nome Ptolomeu I Soter. Ptolomeu viu que Alexandria estava bem-feita, organizada e bem montada e foi esperto o bastante para manter tudo do jeito que estava. Foi tão esperto que nem mudou o nome da cidade para “Ptolomandria”, já que o nome “Alexandria” já era bem conhecido e seu marketing estava bem firmado, posto que todo mundo conhecia. Ptolomeu I sabia que em time que está ganhando não se mexe. Começou aí a Dinastia Ptolomaica.
Voltando ao Mouseion, a ideia de Ptolomeu I era que sua biblioteca tivesse como objetivo a universalidade do conhecimento e devia conservar os escritos de todas as nações, por isso, não abrigava apenas os escritos gregos, mas um conjunto completo de arquivos egípcios e de escritos de outras nações de todos os povos conhecidos da época… ao menos, os povos que os gregos conheciam, é claro. Sua fundação contou com colaboração direta de Demétrio de Falero (350–280 A.E. C.), discípulo de Aristóteles, que não por acaso tinha sido preceptor de Alexandre.
As histórias contadas desde então nos dão a impressão de que toda a literatura grega se encontrava reunida na Biblioteca: livros de Aristóteles, Platão, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Homero etc. Tornou‑se assim o maior centro de estudos e de cultura grega. De igual modo, continha a herança cultural dos povos do Egito, Babilônia, Pérsia, Fenícia, Israel entre outros. Por sinal, este é o período que os judeus estavam no período helenístico e a Bíblia tinha sido traduzida para o grego, nascendo assim a versão Septuaginta.
E assim, a Biblioteca prosseguia no caminho de se transformar num imenso “depósito de livros” (Aποθήκη της Βίβλου) exigindo, naturalmente, especialistas dedicados à organização, catalogação, e adequada manutenção e utilização. No período ptolomaico, entre os seus bibliotecários mais famosos, a Biblioteca contou com homens ilustres, de autêntico espírito enciclopédico, como o próprio Demétrio de Falero, Zenódoto de Éfeso, Calímaco de Cirene, Eratóstenes de Cirene, Apolônio de Rodes, Aristófanes de Bizâncio e Aristarco de Samotrácia – os sete primeiros bibliotecários (epimeletes), respectivamente, dos reinados de Ptolomeu I a Ptolomeu VI, o que abrangeu um espaço de tempo de cerca de 150 anos.
Ao longo dos séculos, a Biblioteca tornou‑se um centro de investigação científica capaz de responder às exigências dos estudiosos que nela trabalhavam. Como menciona Pascale Ballet – egiptóloga francesa e professora de História da Arte e Arqueologia da Antiguidade na Universidade de Poitiers –, todos os cientistas desenvolveram os seus trabalhos em Alexandria e na época ptolomaica puderam abastecer-se de todo o conhecimento deitado em tinta e papiro. Os primeiros passos da investigação literária, da História e da história da literatura, da crítica textual, da Filologia, da Gramática e da Lexicografia foram também dados em Alexandria, graças aos trabalhos de homens como Manetão de Sebenito, Hecateu de Abdera, Filitas de Cós, Aristarco de Samotrácia, Teócrito de Siracusa, Herondas (de Cós ou Siracusa, não se sabe ao certo) e Dionísio Trácio, sendo dirigidos pelos supracitados diretores da Biblioteca.
A Calímaco de Cirene é creditado a elaboração de um catálogo da Biblioteca em todos os domínios do saber, em 120 rolos: os Pinakes. Esta obra hoje está muito fragmentada, mas foi uma das primeiras (ou “A” primeira) enciclopédia, como conhecemos hoje, estando dividida em seções muito precisas como Retórica, Direito, Epopeia, Tragédia, Comédia, Lírica, História, Medicina, Matemática, Ciências Naturais, Astronomia etc. Em cada seção, as obras eram classificadas por ordem alfabética e acompanhadas de uma pequena nota bibliográfica completada por uma avaliação crítica dos escritos do autor em questão e do conteúdo constante lá.
Mas enquanto o fato de que a Biblioteca não existiu além do período clássico é inquestionável – apesar dos detalhes serem contraditórios às vezes –, exatamente o como e por que daquele imenso repositório de saber ter acabado é nebuloso. Enveredamos por uma senda que mistura de fato e ficção de forma tão homogênea que dificilmente sabemos onde termina um e começa o outro.
Segundo Amiano Marcelino, a queda começou quando a cidade foi saqueada sob ordens de Caio Júlio César, e o próprio César relatou a queima de Alexandria como uma consequência acidental de sua guerra contra seu grande rival Pompeu, em 48-47 A.E.C. (a data não é exata). Navios que traziam tropas inimigas tinham sido atracados no porto, perto de uma série de armazéns, e as tropas de César os incendiaram. Veremos os detalhes de Amiano Marcelino mais adiante.
Na conflagração que se seguiu, vários edifícios próximos foram destruídos quando o vento levara as chamas para os armazéns, e dali para a Biblioteca, como é dito comumente, mas aqui resvalamos para o mito que sabemos ser mito. Temos a parte da descrição que as paredes do Mouseion – onde estava a Grande Biblioteca – eram feitas de mármore e mármore não é inflamável. Some-se a isso o fato de o Mouseion não estar muito próximo do porto, mas talvez tenhamos uma pista de como isso teria acontecido.
Conta-se que, por lei, todos os navios que chegavam no porto eram vasculhados à procura de todo tipo de manuscrito. Flávio Josefo nas Antiguidades Judaicas (livro composto entre os anos de 93 e 94 da Era Comum), toma trechos de uma obra chamada Carta de Aristeias (ou Carta a Filócrates), escrita por um membro da côrte de Ptolomeu II – chamado Aristeias, é logico – a um certo Filócrates. Neste documento, redigido em algum momento do segundo século A.E.C. e incluída entre os livros apócrifos, é contada como Ptolomeu II Filadelfo (309 A.E.C. — 246 A.E.C.) recebeu de Demétrio de Faleros a solicitação de recursos para a tradução da Bíblia hebraica, incluindo o Pentateuco e seus comentários, para o grego, com o objetivo de aumentar a coleção de obras da Biblioteca de Alexandria com o conhecimento do povo hebreu. Esta tradução helenística é o que hoje chamamos de Septuaginta (em grego, A Versão dos 70, ou em latim: versão LXX). Ptolomeu II aprovou a iniciativa de Demétrio e enviou presentes ao Templo de Jerusalém, solicitando ajuda ao Sumo Sacerdote, o qual selecionou seis sábios de cada uma das doze tribos, totalizando setenta e dois tradutores para a realização da tarefa de tradução, vindo daí o nome da versão.
Não, gente. Antes que vocês achem disso uma boa iniciativa, não havia nenhuma bondade ou preocupação com o Saber. Era apenas para isolar a língua judaica e reafirmar a superioridade dos textos helenísticos, sendo o grego uma língua que deveria ser considerada como universal. E isso era com relação a todos os outros escritos de todos os outros idiomas.
A propósito, esta história de como surgiu a Septuaginta é um mito. Não se sabe se foi assim, mas muito provavelmente, não. A Carta a Aristeias não pode ser levada como uma fonte fiel, pois não foram encontrados outros documentos que corroborem a ela, apesar de sabermos que realmente os reis ptolomaicos tinham a ideia de helenizar o mundo inteiro. Não por acaso, todos os casamentos dos reis ptolomaicos eram consanguíneos e nenhum deles se dignou a aprender sobre a cultura egípcia, seus hieróglifos, tradições e idioma. Só Cleópatra (na verdade, Cleópatra VII Filopátor) se interessou por isso, mas também não por amor à cultura. Ela tencionava trazer toda a população para si, quando da guerra civil que travou com seu irmão Ptolomeu XIV, com quem fora casada (sim, pois, é). O Saber para Cleópatra realmente era fonte de poder, pois diferente das bibliotecárias, ela sabia muito bem o que fazer com ele para controlar seu país.
No tocante à Carta de Aristeias, o que realmente nos é interessante é o seguinte trecho:
Demétrio de Faleros, o presidente da Biblioteca do Rei, recebeu vastas somas de dinheiro com o propósito de reunir, tanto quanto possível, todos os livros do mundo. Por meio de compra e transcrição; ele cumpriu, da melhor maneira possível, o propósito do Rei. Em uma ocasião, eu estava presente, ele perguntou: “Quantos milhares de livros existem na biblioteca?” e ele respondeu: “Mais de 200.000, ó rei, e farei um esforço no futuro imediato para reunir o restante também”. |
É uma quantia MUITO considerável se levarmos em conta que o mundo Antigo não é como hoje, e ter esta quantidade de escritos era realmente impressionante, tendo em vista que não havia tantos escritores assim.
Essa enormidade era conseguida quando os navios eram atracados e se fazia a busca por todo tipo de escrito, ou agentes da Biblioteca iam para lugares distantes em busca de quaisquer documentos que pudessem encontrar para a sua coleção. Os que eram confiscados eram levados para a Biblioteca, copiados e então devolvidos. Tendo isso em mente, então, é provável que esses volumes apreendidos estivessem temporariamente acondicionados nos armazéns das docas, bem como os que foram comprados em outros lugares, já que os bibliotecários deveriam examinar e catalogar aquilo tudo.
Com o incêndio, danos materiais foram causados às coleções da Biblioteca, mas não foi o seu fim, e muito menos tendo chegado ao Mouseion propriamente dito. Isso se relaciona com o relato do geógrafo Estrabão, que fez grande parte de sua própria pesquisa algumas décadas após os eventos, de 48 a 47 A.E.C., usando fontes da própria biblioteca do Mouseion.
Segundo as descrições de Estrabão, historiador grego que viveu entre 63 A.E.C. e 24 E.C.:
O Mouseion faz parte dos palácios. Tem um passeio público e um palácio mobiliado com assentos num grande salão onde os eruditos pertencentes ao Mouseion tomam a sua refeição comum. Esta comunidade possui também bens em comum e um sacerdote anteriormente nomeado pelos reis, mas atualmente por César, preside o Mouseion. |
Percebam que os escritos de Estrabão confirmam o que eu disse antes: o Mouseion era essencialmente um templo religioso (como o Serapeu, e daqui a pouco falaremos dele), o que nos faz pensar sobre a real presença de um sem-número de escritos no local. Se houvesse essa quantidade incrível de escritos, documentos, pergaminhos etc., Estrabão teria mencionado, certo? Por que ele não o fez? Josefo fez, mas através do relato terciário como mencionado acima, em que não se sabe a real fonte da descrição. Reforçando, o Mouseion era um templo, um santuário em homenagem às Musas, as deusas que cuidavam de toda sorte de expressão artística. Isso explicaria por que o local era administrado por um sacerdote, e não um erudito comum.
Muitos estudiosos concordam que o Mouseion teria sido construído logo após o reinado de Alexandre, e a subida ao poder de Ptolomeu I. Então, quando os registros de Estrabão aparecem, o Mouseion já existia há alguns séculos. A descrição de Josefo é muito, muito posterior. Enquanto isso, Galeno de Pérgamo, o médico grego que ficou riquíssimo tratando gladiadores, escreveu o seu “Comentário sobre as Epidemias de Hipócrates”, do qual temos o seguinte excerto:
Ptolomeu, o rei do Egito, estava tão ansioso para coletar livros que ordenou que os livros de todos os que navegassem para lá fossem trazidos a ele. Os livros foram, então, copiados em novos manuscritos. Ele deu a nova cópia aos proprietários cujos livros lhe foram trazidos depois que eles navegaram para lá. Mas ele colocou a cópia original na Biblioteca com a inscrição “um livro dos navios”. Dizem que uma cópia do terceiro livro das Epidemias foi encontrada com a inscrição “um livro dos navios conforme alterado por Mnemon de Side”. Alguns afirmam que a inscrição não diz como foi alterada, mas simplesmente dá o nome de Mnemon, porque quando os livros foram retirados de todos os outros que ali navegaram, o rei escreveu seus nomes nas cópias que foram depositadas nos armazéns. Diz-se que este Ptolomeu deu provas suficientes de sua ânsia de coletar todos os livros por seu comportamento para com os atenienses. Depois de dar-lhes 15 talentos de prata como garantia, ele recebeu deles os manuscritos de Sófocles, Eurípides e Ésquilo, no entendimento de que simplesmente faria novas cópias dos manuscritos e depois os devolveria intactos. Mas depois de produzir novas cópias magníficas no melhor material de escrita, ele guardou os livros que os atenienses lhe enviaram e devolveu-lhes as cópias que havia feito. Ele os exortou a guardar os 15 talentos e, ao mesmo tempo, receber novos exemplares em vez dos livros antigos que lhe haviam enviado. Os atenienses não teriam outra opção, mesmo que ele tivesse guardado os livros antigos sem enviar novos exemplares para eles, porque quando eles aceitaram o dinheiro, eles concordaram que se ele ficasse com os livros, eles ficariam com o dinheiro e então eles aceitaram as novas cópias e guardaram o dinheiro. |
Voltando a Júlio César, vários autores escreveram sobre como ele foi o responsável pela destruição da Biblioteca do Mouseion. Sêneca (4 A.E.C. – 65 E.C) conta, em seu nono volume dos Diálogos (Quare bonis viris multa mala accidant, cum sit providentia ou “Por que infortúnios atingem os homens de bem, mesmo existindo a Providência”), que
40.000 livros foram queimados em Alexandria. Alguns teriam elogiado esta biblioteca como um memorial mais nobre da riqueza real, como Titus Livius, que diz que foi “um esplêndido resultado do bom gosto e cuidado dos reis.’ Não tinha nada a ver com bom gosto ou cuidado, mas era um luxo aprendido. |
Plutarco (46 – 120 E.C.), em seu Vidas Paralelas, também apontou o dedo para César como causador desta catástrofe:
Nesta guerra, para começar, César encontrou o perigo de ser vencido na água desde que os canais foram condenados pelo inimigo; em segundo lugar, quando o inimigo tentou cortar sua frota, ele foi forçado a repelir o perigo usando fogo, e isso se espalhou dos estaleiros e destruiu a Grande Biblioteca. |
Plutarco cometeu muitos erros históricos nas suas narrativas, mas esta caiu como uma luva na hora de apontar dedos para Caio Júlio César. E isso acabou escalonando, pois, à medida que cada autor colocava individualmente sua própria interpretação dramática na história, os pontos somados aumentaram severamente o conto.
Paulo Orósio (385 – c. 420) escreveu:
As chamas se espalharam por parte da cidade e lá queimaram 400.000 livros armazenados em um prédio próximo. Assim pereceu aquele maravilhoso monumento da atividade literária de nossos ancestrais, que reuniram tantas grandes obras de gênios brilhantes. |
E então, coroa-se com a obra de Amiano Marcelino “Rerum Gestarum”, que diz:
Nisso havia bibliotecas inestimáveis, e o testemunho unânime de registros antigos declara que 700.000 livros reunidos pela energia incessante dos reis ptolomaicos foram queimados na Guerra Alexandrina, quando a cidade foi saqueada pelo ditador César. |
Pelos anos da década de 490, o poeta latino Lucano escreveu “Bellum Civile”, um poema sobre a invasão de Alexandria por César.
Nem diminua o fogo para agarrar os cabos de cânhamo e os conveses escorrendo com piche derretido; o banco do remador. Tudo em um momento, e as vergas mais altas explodiram em chamas: metade fundidas as embarcações jaziam enquanto nadavam os inimigos, todos em armas, a onda nem caiu o fogo sobre os navios sozinhos. Mas apoderou-se com línguas contorcidas das casas vizinhas e abanou a fúria pela brisa do sul, tempestuosa ela saltou de telhado em telhado, não de outra forma em sua trilha celestial, não alimentada pela matéria, desliza a bola de luz apenas pelo ar em chamas. |
Nenhuma menção à Biblioteca aqui, mas o poema fornece um grande exemplo do crescente interesse nesta era diretamente após o desaparecimento final da Biblioteca ao romantizar a grande destruição de Alexandria e, mais tarde, de sua Grande Biblioteca.
De acordo com Lucano, Júlio César foi ao Egito em busca de Pompeu (o general romano que estava em guerra pelo controle de Roma), mas descobriu ao chegar lá que ele já havia sido assassinado. Assim sendo, Lucano argumenta que não havia nenhum motivo para César ordenar o incêndio dos barcos egípcios. Não apenas isso, após a morte de Ptolomeu XII, seus filhos (Cleópatra e Ptolomeu) estavam disputando o trono egípcio numa guerra civil só deles, e César estava mais interessado em alcançar os palácios reais de Alexandria. Dessa forma, para facilitar a passagem da 37ª legião romana da Ásia Menor para o Egito, Caio Júlio César ordenou o incêndio da frota egípcia ancorada em Lochias. Várias estruturas próximas ao porto foram incendiadas e suas mercadorias, incluindo alguns milhares de manuscritos armazenados em um dos edifícios, foram destruídos, mas isso é muito diferente de dizer que toda a Biblioteca do Mouseion foi afetada e que 700 mil livros foram perdidos.
Theodore Venettos, em seu livro Alexandria (2001), cita Lucano e complementa:
Cerca de quarenta mil rolos foram destruídos pelo incêndio. Não havia nenhuma conexão com a Grande Biblioteca, posto que eram livros de contabilidade e livros-razão contendo registros das mercadorias a serem despachadas para Roma e outras cidades do mundo. |
Então, temos relatos que vão escalonando versus exame histórico, como o que Venettos fez. Isso aliado a ocorrências bem documentadas, como quando o imperador Cláudio (10 A.E.C – 54 E.C.) visitou o Mouseion e sua Biblioteca cerca de um século após ter sido destruído por Caio Júlio César, ou quando o imperador Adriano visita o Mouseion em 130 E.C., conforme relatado em Historia Augusta. O templo foi reconstruído inteiramente só para as visitas imperiais? Domiciano (51 – 96 E.C.) usou os trabalhos de estudiosos da Biblioteca Alexandrina para copiar livros perdidos; então, os livros ainda estavam lá, certo?
A verdade é que César era odiado por muita gente e todos os seus críticos inflaram números e atribuíram-lhe ocorrências que efetivamente nunca aconteceram. Mesmo porque, pergaminho aceita tudo, e depois de décadas ou mesmo séculos, como saber o que houve? A arqueologia conseguiu resgatar muitos desses documentos para que pudéssemos examinar hoje, mas o homem antigo não tinha como ter acesso a eles. Ou estavam fragmentados ou havia uma imensa lacuna de tempo entre os acontecimentos e sem ter como fazer referências cruzadas, pois, os pesquisadores de hoje têm acesso a materiais e ferramentas que não se detinha antigamente.
Quanto ao Serapeu, ele nunca foi tão famoso quanto ao Mouseion. Tanto é que quando se fala “Grande Biblioteca” ou “Biblioteca de Alexandria”, só se tem em mente o Mouseion; por isso, acham que uma turba de cristãos destruiu a Biblioteca de Alexandria, mas eles sequer chegaram perto do Mouseion, que já não era lá essas coisas na referida época.
O próprio Carl Sagan confundiu os dois na sua antológica série Cosmos. Carl Sagan disse que a Biblioteca era chamada de Serapeu, e era um templo, mas depois foi consagrado ao Conhecimento. Sagan ainda complementou que:
[a biblioteca] era o cérebro e a glória da maior cidade do planeta (…) a cidadela da consciência humana e farol na nossa jornada para as estrelas. |
Desculpe, Carl, mas não era bem assim. Você fez uma confusão entre a Biblioteca do Mouseion e a do Serapeu, e nenhum dos dois era uma instituição única. Eram apenas bibliotecas de templos, o que, claro, não as diminui em nada, mas nem por isso as amplia muito mais do que eram. E não, lá no Serapeu não se estudava de tudo, o lugar que se fazia isso era o Mouseion, o Templo das Musas.
O Serapeu de Alexandria não era único Serapeu que existia, mesmo em Alexandria. A veneração e adoração ao deus Serápis era disseminada por vários povos em todos os lugares da zona mediterrânica, e o culto ao referido deus teve seguidores entre diferentes etnias e em diferentes cidades, como em Memphis e durante o Segundo Triunvirato de Roma, quando aparecem templos Iseum et Serapeum, dedicados à deusa Ísis e ao deus Serápis.
O que fez de Serápis uma das divindades mais originais de seu tempo é o fato de que ele não surgiu “naturalmente”, mas intencionalmente para obrigar as pessoas a largarem as venerações da religião egípcia e passasse a venerar os deuses gregos, o que Roma fez mais tarde e todas as religiões sempre fizeram.
Sobre o Serapeu que estamos tratando agora não temos muitas informações sobre sua fundação. Especula-se que tenha sido construído a mando de Ptolomeu III Evérgeta (280 A.E.C. — 221 A.E.C.). Segundo informações de algumas fontes contemporâneas (ou nem tanto), a Biblioteca do Serapeu tinha cerca de 42.000 textos. Sobre sua aparência, uma das principais fontes é Aftônio de Antioquia, um filósofo sofista (na época, sofismo não tinha o mesmo significado que tem hoje) e retórico grego que viveu entre o século III e o século IV da Era Comum, cujas datas exatas se perderam no tempo.
A principal obra de Aftônio é Progymnasmata (os Pré-exercícios) uma série de exercícios retóricos preliminares que visavam ensinar aos estudantes de retórica como escrever declamações depois de terem completado sua educação com os gramáticos e exercitar suas capacidades de discursar, contendo exercícios para eles testarem suas habilidades. Sim, era um livro didático, e não um livro de História, e é preciso ter isso em mente ao se examinar seus textos.
No volume XII do Progymnasmata, temos o seguinte trecho:
Dentro das colunatas, cercas foram construídas, algumas tendo se tornado repositórios para os livros disponíveis para o estudo diligente, estimulando assim uma cidade inteira ao domínio do aprendizado; outras foram estabelecidas há muito tempo para honrar os deuses. Sobre as colunatas, há um telhado adornado com ouro e os capitéis das colunas foram trabalhados em bronze e cobertos com ouro. Também não há apenas um adorno do pátio aberto, pois é diferente, algumas retratando as batalhas de Perseu. E uma das colunas, erguendo-se acima do outros em altura, ocupa a posição central, atraindo assim a atenção para o local. Quem segue não sabe para onde se dirige, a menos que use a coluna de Diocleciano como sinal de caminhos. E sendo visível por toda a volta, assim o torna a acrópole em terra e no mar. De fato, a beleza está além do poder das palavras e, se algo foi negligenciado, foi por admiração. |
E aqui chegamos ao início do fim. Vimos que os barcos incendiados por César não teriam chegado no Mouseion propriamente dito, mas talvez afetado os armazéns próximos às docas. Claro, o Mouseion tinha a sua próprio Biblioteca propriamente dita e ela pode ter sido vítima de um incêndio… ou vários deles, já que pergaminhos e iluminação à base de tochas e piras era certeza que ia acontecer alguma tragédia. Não era uma questão de Se, mas de Quando. Os mantenedores da Grande Biblioteca não pareceram atinar sobre isso.
Pelo ano de 271 E.C., a rainha Zenóbia de Palmira, aproveitou-se da imensa confusão que estava o Império Romano e expandiu o território do seu reino, transformando num império. O Império Palmirano ia da metade do Norte da África e se dirigia para o Leste, indo em direção ao Oriente Médio, tomando conta da Judeia – que era possessão romana, mas deixara de ser –, subia pela Anatólia Oriental (atual Turquia), se expandia ao norte para Niceia, fazendo fronteira com o Império Romano a Oeste e o Império Sassânida (hoje, a Armênia).
Aureliano conseguiu resolver seus problemas internos e as invasões germânicas… pelo menos, por ora. Com isso, se dedicou a enfrentar o Império Palmirano, marchando para o leste para enfrentar as tropas de Zenóbia e em menos de um ano o exército de Palmira foi derrotado e a parte oriental do Império foi reconquistada, assim como o Egito, relegando Palmira a nada. Um ano depois, em 273 E.C., Aureliano recapturou totalmente Alexandria, avançando sem deixar pedra sobre pedra e, fatalmente, deve ter chegado ao Mouseion, já que ele fazia parte do complexo do palácio, mas ele não foi até o Serapeu, segundo os registros que temos.
Se foi daí que surgiu a história que César destruiu a Biblioteca de Alexandria e daí evoluiu para ter sido Caio Júlio César, com a visão romântica de Cleópatra chorando, nós não sabemos. O que podemos especular é que foi aí que muito provavelmente o Mouseion e sua biblioteca, se não foram totalmente destruídos, tomaram um sério impacto.
Não que o Serapeu tenha passado por alguns percalços, também. Ao que tudo indica, o Serapeu também sofreu um incêndio em algum momento por volta de 181 E.C. e novamente no ano 217, mas foi reconstruído, embora não haja indicação se o incêndio afetou sua biblioteca ou apenas o complexo do templo. Dada a forma como os rolos de manuscritos eram dispostos, como em nichos nas paredes, não é muito difícil imaginar que incêndios fossem um risco contínuo com as tochas e piras lá existentes.
No ano 313 E.C., Constantino, o Grande, promulga o Édito de Milão, e reconhece oficialmente o Cristianismo, estendendo proteção especial aos sacerdotes cristãos contra qualquer tipo de injurias. O Cristianismo cresce vertiginosamente sob poder imperial e, com isso, há a reviravolta em que todas as demais religiões passam a serem vistas como hereges e um sentimento anti-pagão perde o controle.
No ano de 380, o imperador Teodósio I emitiu o edito de Tessalônica, que estabeleceu o Cristianismo como a religião oficial do Império. Posteriormente, foram promulgados outros editos que reforçaram o primeiro, condenando o paganismo e as heresias, e impondo sanções severas, incluindo a perda de direitos civis, para aqueles que não adotassem o Cristianismo como sua fé. O sentimento anti-pagão não só era permitido, como estimulado, com vários templos sendo convertidos em igrejas cristãs por todo o reino. Teófilo, o bispo de Alexandria, começou a trabalhar destruindo o Serapeu e substituindo-o por uma igreja.
No Livro V da História da Igreja de Sócrates Escolástico ou Sócrates de Constantinopla (nascido em 380, mas não se sabe a data de sua morte) é dito:
O governador de Alexandria e o comandante-chefe das tropas no Egito ajudaram Teófilo a demolir os templos pagãos. Estes foram, portanto, arrasados e as imagens de seus deuses foram fundidas e transformadas em potes e outros utensílios convenientes para o uso da igreja de Alexandria. |
Hordas cristãs promoveram pilhagens e destruição de antigos templos helenísticos, tendo bibliotecas ou não. Ou eram transformados em igrejas cristãs ou destruídos. Téon de Alexandria, pai de Hipátia, foi o último diretor registrado da Biblioteca do Mouseion; foi brutalmente assassinado por uma turba cristã em Alexandria no ano 415, tendo sua filha o mesmo destino.
O que aconteceu com o Mouseion e o Serapeu nesta mesma época, não se sabe ao certo, mas já não havia mais investimentos nele assim que Roma conquistou o Egito e os imperadores que se seguiram. Alguns davam valor às bibliotecas lá existentes, mas não todos, e manter os dois era dispendioso, com Roma tendo que gastar muito dinheiro em campanhas militares. O que é seguro dizer é que o ano 390 foi provavelmente o último da instituição, ou antes, quando Aureliano arrasou o Distrito Real de Alexandria nos anos 200 da Era Comum.
Para Edward Gibbon, autor do clássico O Declínio e a Queda do Império Romano, a Biblioteca de Alexandria foi uma das grandes conquistas do mundo clássico e sua destruição – que ele conclui que foi devido a um longo e gradual processo de negligência e crescente ignorância – foi um símbolo da barbárie que dominou o Império Romano. Os seguidos incêndios foram responsáveis por muitos livros terem se perdido, e a falta de investimento em copistas para criar novos exemplares de cada papiro acabou com quem lentamente o saber grego e de outras culturas fosse se perdendo, e o que sobrou foi salvo pelos árabes, que à guisa dos primeiros reis ptolomaicos, davam valor ao Conhecimento, e pelo mesmo motivo: o religioso. Os cristãos primitivos não precisam estar preocupados com isso, o que foi mudado pelos primeiros mosteiros que passaram a traduzir, copiar e guardar tudo o que lhes aparecia.
De fato, não houve uma ordem geral do papado para que a Biblioteca de Alexandria fosse destruída. Entretanto, Cirilo, Bispo de Alexandria, conclamava seus seguidores a destruírem todos os templos, pois somente o Cristianismo era a religião válida, pondo fim de vez a séculos de tolerância religiosa, mesmo que tênue.
Sobre as bibliotecas, os relatos desencontrados, as confusões de relatos, a miríade de textos discordantes criou um mito, uma aura mágica de algo que efetivamente não existiu, nem os acontecimentos corroboram com o que realmente sabemos.
Hoje, temos a Internet, pois se tem algo melhor que um imenso prédio com todo o Saber armazenado é ele estar em cada canto, em cada computador, em cada site, e se você acha que isso leva a ter mentiras e as chamadas modernamente de Fake News, lembre-se que antes não era diferente, com textos sobre Astrologia e curas por meio de divindades. Assim como nas grandes bibliotecas, o Saber está lá para esmiuçarmos, examinarmos, pô-los à prova e, enfim, traçar o conhecimento de forma que ele possa ser sustentado por várias fontes e análise criteriosa.
Um site que suma não vai ter seu conteúdo perdido, pois ele poderá ser replicado facilmente, sem necessidade de copistas profissionais. Você, que está lendo este texto, pode ser um disseminador de conhecimento e um agregador de cultura. Basta querer.
O conhecimento é importante demais para ficar guardado escondido. Ele deve ser compartilhado com todos. Você faria isso? Compartilharia o link deste texto?
Sempre bom ter tempo pra ler seus artigos, mais um deles que é estupendo.
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