Administrar um império é tarefa árdua, e registrar e pagar os inúmeros trabalhadores pode ser um pesadelo. Pesadelo pior é quando você trabalha muito e não recebe ou merece receber, ou que estava acordado receber. A saída para isso seria negociação, certo? Se continuar as más condições, a resposta dos trabalhadores seria a greve. Acredite, isso não é nenhuma novidade; já não era novidade no Antigo Egito, e temos registros do que se pode considerar a primeira greve de trabalhadores documentada.
Tudo começa com Ramsés III, também chamado “Ramsés, Príncipe Vitorioso de Iwunw”. Ele foi o segundo rei (parem de chamar de faraó, já que este termo nunca foi usado pelos egípcios) da XX Dinastia. E não, ele não era filho de Ramsés II; era filho do rei Setnakht. Ramsés III reinou entre 1194 e 1163 A.E.C e teve sérios problemas. Foi durante o seu reinado que o Egito foi assolado por diversos tipos de invasores, desde os hicsos (os Povos do Mar) e os líbios, nomenclatura dada pelos gregos no século 2 A.E.C., que poderiam ser diferentes povos que poderiam ser fenícios, cartagineses ou quaisquer tribos que estivessem perambulando por lá, já que a Líbia, como conhecemos hoje, não existia. Não era um Estado independente.
Ramsés III
Foi durante o reinado de Ramsés III que se eu a chamada Crise da Idade do Bronze, um período de transição na região que compreende o Mar Egeu, o sudoeste da Ásia e o Mediterrâneo Oriental, e que se estendeu da Idade do Bronze tardia até a Idade do Ferro. Esse período foi caracterizado pelo que se pode chamar de prenúncio de Idade das Trevas, já que foi marcada por violentas mudanças culturais e perturbações abruptas, com guerras e invasões por todos os lados do Mundo Antigo.
O Egito tinha problemas, não apenas com invasores externos, mas com revoltas dentro dele, e Ramsés III teve que usar toda a sua habilidade política, econômica e militar para colocar a casa em ordem, o que de fato conseguiu fazer. Uma das hábeis manobras foi ter recrutado parte dos invasores que tinham sido derrotados para o próprio exército egípcio usando um argumento muito simples, mas eficiente: ou luta do nosso lado, ou vai morrer de forma beeeeeeeeeeeem desagradável. Com isso, os egípcios – que não tinham muita experiência com navegação e menos ainda no combate aquático – conseguiu sair vencedor, colocando os Povos do Mar para correr.
Por causa da Bíblia, criou-se uma ideia de que o Egito tinha escravos trabalhando em tudo. Nada mais longe da verdade. Egito não tinha escravos; simplesmente, não precisava, já que todo mundo em volta fazia questão de ir para o Egito para tentar a vida e os nobres arrendavam terras ao longo do Nilo para que cultivassem. A burocracia estatal sabia que cobrar de cada agricultor seria uma dor de cabeça, então, cobravam uma espécie de “impostos de renda” dos donos das terras, e eles que se virassem cobrando dos seus locatários.
No tocante às obras tocadas pelo governo estatal, os trabalhadores recebiam seus pagamentos mediante suas ocupações. Claro, que quanto mais especializada a pessoa fosse (escultor, arquiteto, mestre pedreiro, tecelão, artesão etc.), o pagamento era melhor. Se fosse só carregador de pedras, também iria receber pagamento, mas não na mesma quantia, o que, convenhamos, é muito justo.
Normalmente, não rolava dinheiro como conhecemos. Os trabalhadores eram pagos com víveres, como trigo emmer (uma das primeiras variedades de trigo domesticadas pelo homem), cevada (com o que faziam cerveja), e até mesmo a própria cerveja! No caso do trigo, o pagamento usual era de cerca de quatro sacos de trigo por mês, o que é bem considerável, já que este tanto de trigo seria suficiente para alimentar até dezesseis pessoas. Não apenas isso, ainda recebiam rações diárias de um saco e meio de cevada, o que não é nada mal. Era um excelente pagamento.
Um dos motivos de não receberem dinheiro, é que o ouro era controlado pelo Governo com mão de ferro, e como no final das contas tudo iria ser revertido em comida, tanto fazia, já que os trabalhadores tinham suas próprias plantações ou gado. Ainda assim, havia cotas de recebimento de peixes, legumes e frutas dadas pelo Estado, que tinha suas próprias fazendas e sistema de produção de alimento, fora as terras arrendadas. Sim, era preciso muita gente controlando isso, ou o império iria ruir da noite pro dia, e levando em conta os milênios da civilização egípcia, dá para se ter uma deia que eles eram muito bons nisso.
Ah, sim. Como falei logo acima, o pagamento podia vir sob a forma de cerveja, mas podia ser pão, também, e se você parar para pensar, é preciso uma padaria bem grande para pagar todos os trabalhadores com pão, o que levava à contratação de padeiros e ajudantes, o que promovia a queda de desemprego no Antigo Egito, já que todo mundo estava trabalhando, e o melhor: ganhando por isso! Pensem na logística disso tudo, não só produção, armazenamento e distribuição. Bem, o pessoal do Nilo pensou, e só um dos armazéns de grãos no complexo do templo em Tebas sozinho era capaz de dar conta de alimentar toda a aldeia dos trabalhadores por dez anos
DEZ ANOS!
Achou que acabou? Mas não acabou. As roupas, madeira e cerâmica também eram fornecidas aos trabalhadores, porque trabalhadores bem atendidos não se revoltam. Sabem como é. Esse negócio de revolta pode não dar muito bem pra quem está no comando. Se não acredita em mim, pergunte aos franceses.
Mas no ano 29º ano do reinado de Ramsés III, o impensável aconteceu: uma falha de logística, e isso poderia dar em algo muito, muito ruim, ainda mais que o Egito estava se reerguendo depois da campanha contra as invasões dos Povos do Mar e dos líbios. No segundo mês do respectivo ano (algo em torno de 1160-1161 A.E.C., os egípcios só contavam o ano de reinado do governante no poder), um escriba júnior Amennakhte, da aldeia que hoje fica em Deir el-Medina, preparou um relatório ao vizir (uma espécie de ministro) que os grãos estavam faltando em suas rações. Quinhentas pessoas na aldeia precisavam ser alimentadas, e a comida não tinha sido entregue.
Isso fez a máquina burocrática rodar e o que se descobriu foi que um pequeno templo sozinho perdeu mais de 90% de suas reservas de grãos do norte para funcionários corruptos, e esse desfalque passou despercebido por dez anos. Obviamente, quando foi descoberto, os funcionários corruptos não tiveram final feliz.
Ah, e antes que você pergunte, sim, os templos não tinham apenas função religiosa. Eles eram a forma de controle burocrático do governo imperial, já que o governo era praticamente uma teocracia, e os sacerdotes, depois da nobreza, eram os indivíduos mais poderosos e mais ricos do Egito. E sim, é óbvio que a função nobre-sacerdote se confundia, ainda mais quando se lembra que o Rei era o sumo-sacerdote, mandando em todos os demais, o que foi o grande problema durante o reinado de Akenaton quando este promoveu uma reforma religiosa.
Quando vinte dias seguidos se passaram, sem rações de trigo sendo distribuídas, os operários deixaram a aldeia e caminharam até o templo mortuário de Horemheb, que ficava ao lado do templo em Medinet Habu, na esperança de encontrar trigo das reservas do templo. Dois dias depois, 46 sacas foram entregues, só que esta quantidade era insuficiente.
Três meses depois, os trabalhadores ainda não haviam recebido rações, e o clima estava ficando mais quente que o calor do deserto. No décimo dia de sua semana de trabalho, os trabalhadores deixaram a aldeia e foram para Medinet Habu, que também servia como centro administrativo da cidade de Tebas (atual Luxor, sede do governo egípcio).
Para os antigos egípcios, uma semana consistia em dez dias, não sete, então o dia dez era de fato o dia de descanso. Deixar sua estação administrativa, ou seja, a vila e o Vale dos Reis (o complexo mortuário onde os reis – duh! – eram enterrados), foi um evento sem precedentes e assustou a burocracia. Os trabalhadores não foram autorizados a permanecer em Medinet Habu, então, eles continuaram para o norte até o templo de Tutmose III, e começaram o seu protesto, embora pacífico. Eles estavam em greve, mas sem arruaça, voltando para casa à noite.
O governo viu que se não agisse, ia perder o controle da situação, e com muitos trabalhadores se organizando numa revolta, a certeza é que o futuro não ia ser nada agradável. Os trabalhadores estavam alheios ao que os governantes estavam fazendo: a greve começara. No dia seguinte, repetiram a saída, desta vez reunindo-se no Ramesseum, o templo funerário do rei Ramsés II. Para apaziguar os trabalhadores, foi distribuído 55 pequenos bolos, o que de início parecia que ia resolver, já que os trabalhadores, como bons egípcios, eram tão organizados que acabavam o protesto do dia, iam para casa à noite e voltavam a protestar no dia seguinte. Eles voltaram ao Ramesseum, só que dessa vez entraram no templo propriamente dito. Aí a coisa ficou completamente feia e os burocratas trataram de correr. Os trabalhadores receberam as rações devidas do mês anterior, mas o pagamento do mês corrente, não.
Eles iam voltar, e você já imagina que estavam mandando reforço policial, certo? Errado. A segurança foi fornecida sob a forma de um grupo de soldados-policiais núbios chamados Medjay, e eles estavam lá para dar segurança aos trabalhadores que estavam protestando. Seu chefe encorajou os trabalhadores e as famílias a irem ao templo de Seth I em Qurna, o templo mais ao sul da região, já que, segundo se especula, os outros templos estivessem fechados aos trabalhadores, já que os sacerdotes não iriam segurar este BO.
Por mais quatro dias, os operários se reuniram no templo, fechando a aldeia. Desta vez, eles entraram em ação, quando as rações foram finalmente entregues, tudo o que lhes era devido. No mês seguinte, os trabalhadores voltaram a não receber o valor devido. Desta vez, os trabalhadores ameaçaram violar os próprios túmulos pelos quais trabalharam tão arduamente, o que soou algo como “agora a merda ficou séria!”, já que os túmulos (principalmente os de gente graúda) eram ornados com joias e obras de arte, e nenhum sacerdote iria querer se ver com um finado voltando para cobrar o que lhes era por direito no pós-vida.
O vizir foi pessoalmente se encontrar com os trabalhadores e tentou explicar que não havia grãos para dar a eles, o que não convenceu muito, diga-se de passagem. Então, o Vizir fez o que pôde: entregou meias rações aos trabalhadores, quatro dias depois. Mais de uma semana depois, os trabalhadores se reuniram no templo de Merneptah e, como o governador de Tebas estava próximo, dirigiram-lhe suas queixas, que como bom político prometeu muito e fez pouco, mas mostrou evidências de apropriação indevida de alguma compensação que lhes era devida corretamente.
Os protestos continuaram, não apenas no reinado de Ramsés III, mas nos reinados subsequentes, também, tendo uma breve paz nos reinados entre Ramsés IV e IX, apenas para começar novamente até o reinado de Ramsés XI. Após seu reinado, os reis não foram mais enterrados no Vale dos Reis. Os operários foram embora, e a aldeia encontrou outros usos.
Tudo isso foi registrado pelo próprio Amennakhte no que ficou conhecido como “O Papiro da Greve de Turim”, que hoje está no Museo Egizio, em Turim, lógico. Este é um relato contemporâneo da primeira greve operária registrada na história, e como é de praxe entre os egípcios, é extremamente detalhado. Amennakhte registrou com precisão as datas no papiro antes da greve, e principalmente as preocupações administrativas que potencialmente indicam um problema anterior ao conteúdo do papiro, a primeira “greve” registrada é datada do “Ano 29, 2º mês de Peret (o nome egípcio para sua estação de crescimento), dia 10″, com os trabalhadores reclamando “estamos com fome” depois de não terem recebido suas rações salariais, e, finalmente, encenando um protesto atrás do templo mortuário de Tutmés III.
O papiro é um documento interessante, pois destaca os problemas socioeconômicos em curso que atormentaram o Egito no final do Novo Reinado. Problemas que elevaram o custo dos alimentos e levaram, em poucos anos, a uma prática generalizada de corrupção de alto nível em Tebas e roubo de túmulos pelos moradores de Tebas, a fim de pagar por isso.
Então, se hoje muitos túmulos de reis, príncipes e vizires estão vazios, pois foram violados e dilapidados de suas riquezas, você já tem um bom motivo do porquê isso ter acontecido.
Na página a seguir, o relato das mãos de Amennakhte.