O que é Mumificação?

Por que múmias viram o que são?

Bem, entendemos que as sociedades procuravam tratar seus mortos com o máximo de respeito. Daí foi um pulo para perceber que ter os seus corpos apodrecendo não era lá o que as pessoas quisessem para si. Ninguém queria ser um pedaço de carne à disposição de fungos e bactérias, apesar de serem isso mesmo e a Natureza está pouco se lixando se você foi uma pessoa boa e não merece ser almoço de vermes.

Bem, a verdade é que primeiramente nós apodrecemos, depois os vermes atacam. Lindo, não? Por que apodrecemos? A verdade é que a resposta não é senão “Por que não?”. Não somos pessoas ou seres vivos para a Química. Somos substâncias químicas. Então, precisamos entender uma coisinha a mais: O que é apodrecer?

O apodrecimento começa com a autólise, o processo pelo qual uma célula se autodestrói espontaneamente; algo meio como nos filmes do Missão Impossível. Vamos pegar o exemplo dos lisossomos, organelas celulares que servem para degradar partículas vindas do meio extra-celular, assim como a reciclagem de outras organelas e componentes celulares envelhecidos. Eles contém enzimas hidrolíticas capazes de quebrar quimicamente  proteínas, ácidos nucleicos, carboidratos, lipídios, e detritos celulares. Para tanto, esses lisossomos contém mais de 50 enzimas diferentes, capazes de dar conta do serviço mesmo em pH ácido, em torno de 4 a 5. Aprendi isso com a Wikipédia. Também fala-se sobre eles nos livros de Biologia. Compre um!

Os lisossomos são envoltos por uma membrana, que encapsula tudo oque tem lá dentro. Quando a membrana lisossômica acaba sendo afetada por fatores físicos e químicos (poderíamos dizer biológicos, também, mas fatores biológicos se valerão de fenômenos físicos e/ou químicos), ela se rompe e há uma espécie de “derrame” enzimático. Estas enzimas passarão, então, a atacar tudo oque estiver à sua volta, ou seja, nós mesmos. Estas enzimas irão destruir todas as substâncias químicas que nos formam, degradando-as, e produzindo substâncias mais simples. A Química está pouco se importando se aquilo que está ocorrendo fará o tio Adalberto deixar de ser o que era. As estruturas dos tecidos serão atacadas e começaremos a “implodir”, se é que podemos dizer isso (não, não podemos, mas deixarei isso assim mesmo à guisa de metáfora. Me processe!)

Em termos físico-químicos, o que temos é a ação sobre substâncias químicas de cadeia longa, como proteínas, carboidratos e lipídeos, por exemplo. Estes também são desnaturados por ação do calor, por exemplo. Mas também há ação de agentes decompositores, como fungos e bactérias, que se alimentarão dessas substâncias, já que são um banquete para estes seres.

Se você estudou em algum colégio decente, sabe o que é fermentação alcoólica, por exemplo. Coloca-se uma mistura rica em carboidratos para que fungos e bactérias o consuma e produza-se álcool. É assim que se faz bebidas alcoólicas, desde cachaça até seu whisky 12 anos. Quer fazer em casa? Coloque certa quantidade de água filtrada num copo e dissolva açúcar. Coloque um tablete de fermento biológico (não, fermento químico não serve) e cubra com  filme de PVC.Quando o Saccharomyces cerevisiae (o fungo do tablete de fermento) começar a fermentação, será produzido álcool e gás carbônico, que será evidenciado quando o filme de PVC estiver estufado. Ao se retirar o filme, você perceberá o cheiro do álcool.

Também existem fermentações ácidas, como a lática e acética. Obviamente, a produção será de ácidos, e é assim que produzimos vinagre, por exemplo. Ao se produzir vinhos, obtidos da fermentação da uva, deve-se ficar controlando o processo para evitar que haja fermentação acética, ou aquele lindo merlot que você está pensando em fazer acabará virando um vinagre tosco que será usado para temperar salada de alface e tomate.

Muito bem, fungos e bactérias atacam compostos orgânicos, decompondo-os em substâncias cada vez mais simples, secretando substâncias que atacam o ambiente ao redor. Essas substâncias simples, então, serão absorvidas pelo ambiente, sendo utilizados para sínteses químicas por outros seres vivos. Se não fosse por isso, plantas não conseguiriam sobreviver. Plantas não “comem” matéria orgânica, e sim os restos inorgânicos, principalmente os nitrogenados. Em outras palavras, as proteínas (compostos nitrogenados) acabam sendo degradadas e o nitrogênio virando nitratos inorgânicos, que são muito amados pelas plantas.

Mais detalhes em Cientistas solucionam mistério do ciclo do nitrogênio.

Impedir esta ação é o que mantém o material orgânico preservado e, por isso, colocamos corpos em formol, que mata fungos e bactérias, prevenindo que os tecidos sofram decomposição.

No caso das primeiras múmias egípcias, como dito, o responsável pela formação da múmia é o altíssimo calor, que desidrata os tecidos. Sem água, bactérias e fungos não conseguem se proliferar. Já para as múmias andinas sua preservação se deu por uma baixa umidade relativa do ar, o que as fez perder água para o ambiente, além de contar com outro fator: o frio. O mesmo frio que congelou o corpo de Ötzi. A baixa temperatura diminui atividades biológicas, mas isso você sabe; afinal, você tem uma geladeira em casa, não tem?

À medida que os egípcios foram se especializando em produzir múmias, eles mantiveram todo o princípio: conseguir que o corpo se mantenha o mais desidratado possível. Acredito inclusive que foi daí que tiveram a ideia de retirar os órgãos, cuja capacidade de sofrer autólise é muito maior que os tecidos musculares, epiteliais e, claro, ósseos. Os órgãos internos eram mumificados à parte, e por um processo diferente. Ainda assim, tudo era baseado em remover ao máximo líquido dos tecidos.

Nós usamos coisa parecida até o advento da geladeira, e mesmo depois dela ainda usamos algumas dessas técnicas. A carne seca e o bacalhau são exemplos em que usamos sal para conservar a carne e o peixe, pois o sal comum não contém apenas cloreto de sódio, mas uma mistura de sais como o cloreto de magnésio, que absorve água do ar (o MgCl2 é chamado “deliquescente”, pois absorve tanta umidade que chega a se dissolver na água absorvida, formando uma solução por si só). Assim, o sal retira a água dos tecidos e é ótimo para desidratar folhas e pétalas de flores para montar um herbário ou  um simples marcador de página fofinho. Entenderam porque os egípcios usavam sachês de sal nos defuntos antes de começar o processo de mumificação propriamente dito?

Já em países de inverno muito rigoroso, era costume guardar a carne em grandes barris com sebo derretido. Depois que a gordura esfriava, ela se solidificava, congelava e impedia que a carne estragasse facilmente.

No caso do Homem de Tollund, os compostos da turfa impregnaram os tecidos do meninão; por isso, ele tem essa coloração escurecida. No entanto, por causa da acidez da turfa, os ossos acabaram sendo dissolvidos em vez de conservados. Assim, na foto (acima), apenas a cabeça é realmente dele, assim como os órgãos internos foram preservados (que não estão expostos junto com a cabeça. O corpo é recriação artística), mas não os ossos. Isso porque o fosfato de cálcio dos ossos é derivado de um ácido fraco. Em presença de um ácido mais forte, o equilíbrio é deslocado, formando ácido fosfórico, sendo o cálcio perdido para o ambiente. É como colocar um osso de coxa de galinha no vinagre, que é uma solução que nunca passa de 3% de ácido acético. O ácido acético já é um ácido fraco, mas uma solução a 3% é mais fraca ainda. Ainda assim, ataca o osso de galinha, deixando-o “borrachento”.

O principal responsável pela conservação dos tecidos pela turfa é a reação de Maillard entre os grupos amina no colágeno e os grupos carbonila no sphagnan com resíduos de D-lyxo-5-hexosulopyranuronic acid, um ácido húmico. O Sphagnan e seus compostos transitórios, como o ácido húmico, interagiram com o nitrogênio das proteínas, que não só estão presentes nos tecidos humanos, mas nas das bactérias também. Isso fez com que essas danadinhas não conseguissem se reproduzir e continuar seu ataque, promovendo a preservação dos tecidos.

No caso do Mestre de Liuquan, a dieta tóxica dele, a remoção dos órgãos internos e o “embrulho” dentro da estátua fez com que agentes decompositores não conseguissem proliferar. Coloque um bom pedaço de contra-filé que foi banhado em cianeto dentro de um bloco de concreto e voilà! Ele também estará conservado para a posteridade. Se bem que eu acho que você fará melhor se pegar essa peça de contra-filé, temperá-la com sal grosso isento de cianeto e levá-la para a churrasqueira.

No próxima página veremos como ainda achamos que múmias são fenômenos sobrenaturais, dignos de veneração.

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