O Teste do Busão

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Uma coisa eu posso afirmar sobre o presente artigo: ele poderá ser lido e relido por muito tempo e não vai ficar um centímetro sem se desviar da realidade. Ele vai explicar como muito do que vocês dão importância não terá nenhuma percepção em larga escala. Este artigo coloca em pauta uma coisa que geral ignora, que geral diz se preocupar, mas a verdade é que geral é uma ridícula minoria.

Este artigo coloca em pauta o pessoal que pega ônibus e sua percepção e interesse pelo que está acontecendo.

Não vou citar nenhum caso particular. Escolham o que vocês quiserem, desses que vocês pegaram no Facebook, Twitter, palestra da Hinode… não importa. Escolheram? Ótimo! Agora, façam o Teste do Busão: peguem um ônibus às 6 da manhã (desses que pessoal pegou na periferia e usa a condução pra ir pro trabalho). Não importa o ônibus. Perguntem às pessoas: O que vocês acham do político __________? O que você achou das denúncias a respeito de __________? Esperem a reação.

Sim, eu sei que é chocante. Mas o seu mundinho de redes sociais é pequeno, muito pequeno. Quem tem que pegar ônibus cedão pro batente e voltar tarde, muitos com 3 horas de viagem para ir e voltar não têm tempo, irmão. Lamento, mas essa é a verdade.

Saiu uma denúncia contra um político (não importa qual). Collor soltou um “duela a quién duela”. FHC saiu com uma gravata amarela num país onde apenas o rei pode usar amarelo (sob pena de morte). Lula bebia uns gorós, Requião comeu semente de mamona, Dilma falou em saudar a mandioca, Temer fez vídeo no Twitter, Bolsonaro com mania de nióbio. Gravações de um lado pro outro, denúncias sobre todos eles. (com o passar do tempo, teremos outros exemplos, mas você entendeu)

O seu Josualdo continua tendo que sair cedo da Rocinha e ir pra Copacabana fazer uma obra. Dona Edwiges sai de São João do Meriti para trabalhar como faxineira no Recreio dos Bandeirantes (substituam pelas regiões geográficas que melhor lhes aprouver). Eles chegam em casa tarde. Dona Edwiges vai ainda cuidar da casa, arrumar tudo, limpar e faxinar e preparar a comida enquanto vê a novela depois que aquele moço simpático deu boa noite. Ela retribuiu o “boa noite”. Rapaz muito gentil. Seu Josualdo chegará em casa e só quer ver um futebolzinho. No trajeto, viram como está a afilhada pelo Facebook. Fizeram “hehehe” com um vídeo engraçado feito por um dos amigos. Tiraram fotos do chopinho no fim de semana.

Eles só estão no celular tocando suas vidas e vendo a quantas andam os seus queridos. Algumas empresas de ônibus aqui no Rio até colocam wi-fi na faixa e até umas portas USB, enquanto Elon Musk (seu Josualdo e dona Edwiges nunca ouviram falar nele) promete levar internet para pessoas de baixa renda (mentira! Ele está é desenvolvendo um sistema de comunicações rápido para ajudar no mercado financeiro. O que sobrar de banda ele manda pra algum lugar esquecido. Ou não).

Seu Josualdo e dona Edwiges não estão com tempo para se preocupar quando o político vagabundo foi processado. Para eles, é só mais um. Eles continuam tendo contas. O filho amanheceu com resfriado, o xarope tá 37 reais 100mL. O posto de saúde tá lotado e não dá pra perder uma manhã de trabalho, pois chefe não é compreensivo. O chefe acompanha com indignação tudo o que indigna a vocês nas redes sociais, mas o chefe não se preocupa com seu Josualdo ou dona Edwiges.

Vocês acordam de manhã (9 horas) reclamando que não queriam acordar. Seu Josualdo já está quase na hora do almoço e dona Edwiges ainda está terminando de fazer o almoço. Vocês surtam sobre fake news e montagens do Deepnude. Dona Edwiges compartilhou gif de Nossa Senhora e do Chico Xavier. Ela só quer dar um voto de esperança a outras como ela. Seu Josualdo não precisa de nudes fakes de qualquer artista. Os amigos do serviço compartilharam alguma foto de uma vizinha desinibida.

De pessoas como seu Josualdo e dona Edwiges, os ônibus, metrôs, trens e barcas estão cheios. Nenhum deles liga pra sua indignação. Você tem tempo, eles não. Você se diz importar, eles não se importam. Eles querem pagar as contas. Eles não ligam para uma luta de classes que só existe na sua cabeça. Não acham que imposto é roubo e devemos voltar à Era do Escambo. Não dão a mínima pra pessoas que são monarquistas ou comunistas ou capitalistas ou xintoístas

Eles não gostam do chefe na medida que ele é um cuzão, mas eles gostam do trabalho pois é dele que tiram seus sustentos. Você pode tuitar durante o expediente? Eles não. E se você – sim, você mesmo – vir sua faxineira parada no meio do expediente para dar uma checada nos status, você vai reclamar.

A verdade nua e crua é que você está com tempo sobrando e não tem problemas financeiros.

Isso mesmo!

VOCÊS NÃO TÊM PROBLEMAS FINANCEIROS!

Nenhum de vocês que está me lendo agora tem os mesmos problemas que o povo do Busão. Vocês têm problemas? Todo mundo tem, mas, acredite, só de ter água encanada já lhe deixa em melhor situação que 60% da população brasileira. Ganha mais que um salário mínimo? Vive em grande cidade, sem ser numa favela ou gueto? Pois é. Não, o povo do Busão não tá nem aí para revolução socialista ou Brasil acima de tudo. Patriotismo para eles é torcer pela Seleção Brasileira. Algo para dar alguma alegria enquanto o time preferido não joga. Filma eu, Galvão!

Vocês têm é uma arrogância colossal (maior que a minha, mas eu nunca disse que era humilde, mas também nunca achei que os meus problemas eram os mesmos de todo mundo) em achar que o que rola no seu whatsapp é o que aparece todo mundo. E mesmo que se aparecer, de novo, sem tempo, irmão.

Povo do Busão não lê intercept. Não lê Antagonista. Não lê Brasil 247. Não lê MBL. Não lê Meio Bit. Não lê E-Farsas. Não sabe o que é anarco-capitalismo. Nunca viu Mamãe Falei ou Felipe Neto ou Nando Moura. Povo do Busão nunca viu Ciência de Verdade, nunca nem viu Ceticismo.net. Eles sequer verão este artigo. Vocês moram num nicho da Internet. São como aqueles caras do Viva Rio que discutem a miséria do povo num apartamento da Vieira Souto, tomando seu whisky e no fim de semana se vestem e branco para abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas, mas só de pensar em ir em Realengo dá urticária.

Eu também já fui como vocês. Eu achava que as pessoas tinham que saber mais, se instruir mais, estudar mais, estarem antenadas vendo 395 telefornais e ouvir rádios para ficarem bem informados. Depois percebi que era irrelevante. A realidade dessas pessoas não ia mudar em nada, pois eles não têm como mudar nada. E não será você que provará o contrário.

Quanto a mim, acho que meu momento em que a ficha caiu foi quando eu dei aula no Noturno para uma turma de EJA cuja aluna mais novinha tinha uns 50 anos. Minto, o mais novo tinha 18 e era filho de uma daquelas senhoras.

Ao chegar na sala, no alto dos meus 28 anos, fui abordado por uma senhora risonha que me disse “Olha aqui, professor. Você tem idade para ser meu filho. Não vou chama-lo de senhor”

Minha resposta: “sim, senhora”

Era uma turma de senhores e senhoras que queriam tirar o tempo perdido. De longe, minha melhor turma e sinto saudades deles. Isso tem décadas! (literalmente). Me sinto incomodado de olhar para trás e sentir que alguns deles já faleceram, mas eles me ensinaram muito. Me ensinaram que eles estão acima de picuinhas de políticos. Eles estão apenas querendo levar a vida e serem felizes às suas maneiras. Chegou fim de semana? Vamos para o almoço com a família. Vamos dar uma apertada para dar um brinquedo pros filhos, curtir uma festinha de aniversário. Fazer um churrasco na laje, juntar os amigos pois hoje é dia de ver o Mengão!

Vocês não estão divulgando nada pra eles. Eles estão lá, na deles, felizes.  Vocês estão com esses arroubos pseudointelectuais, apenas chilicando com seus pares, restritos nas cavernas platônicas de vocês, achando que as imagens projetadas nos seus computadores traduzem a realidade.

Dito isso, olho para a tela do meu computador agora e me toquei que eu também vivo num nicho. Para quem estou escrevendo isso? Para quem escrevo divulgação científica? É apenas meu ego. Não estou educando ninguém. Não estou divulgando nada. Blogueiros, podcasteiros e youtubeiros estão num ridículo nicho. Só isso.

Talvez seja um pensamento desesperador e sensação de total perda de tempo. Talvez seja algo libertador pelo fato de eu poder escrever o que quiser. Para quem estou escrevendo? Para mim, que é o motivo pelo qual todo mundo produz conteúdo. Mas eu não me engano. Nem eu mesmo passaria no teste do Busão.

5 comentários em “O Teste do Busão

  1. Creio que o autor deva ser identificado. Ou registre-se que o autor não deseja ser identificado, podendo identificar sua profissão.

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  2. Reconfortante e necessário. Me trouxe confirmação. Como é bom ler uma opinião fluida escrita.
    Não conhecia o site, vim parar aqui fazendo pesquisas para meu TCC sobre veganos e acabei lendo outros textos.

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  3. Já fui uma, já fui outra. Acho que tô no meio, agora. Mas faz tempo que não acho que o que tá nesse mundo virtual tenha algum impacto na vida real. E tem me irritado bastante a mentalidade “você precisa saber de [insira algo aqui]”, tratando o interlocutor virtual ou real como uma criança que precisa ser educada – e às vezes repreendida – porque está “alienada”.

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