Carta a um pai cético

Olá, como tem passado? Eu sei que você está com dúvidas, pois só as religiões têm a certeza absoluta. Você se pergunta como criar um filho com essa imersão religiosa que há por aí. Há programas evangélicos, católicos, espíritas etc. Como impedir as crianças de terem contato com este mundo vil das religiões? Simples: não impeça. Enterrar a cabeça na areia não é diferente de um cristão fervoroso fingir que não existem outras religiões e nem que existe a possibilidade do deus dele ser “o deus errado”. Você pretende criar uma pessoa com capacidade de raciocinar pro si próprio e esconde fatos? Tsc tsc! Mau garoto você é!

O "problema" de se criar um filho num mundo onde as religiões são predominantes não é bem um problema. Vai depender da idade de sua criança, e para qualquer pai, seu filho ou filha é e continuará sendo sempre uma criança. A minha não estuda em colégio católico, mas eu não me importaria. Sim, teria reza, sim teria aula de religião; so what? Em outros colégios teria Paulo Freire, o que pode ser pior?

Você, querido pai, querida mãe, deve entender que tudo tem um tempo. Não queira tirar místico de seus filhos. Joseph Campbell já dizia que um dos problemas das sociedades foi ter perdido os mitos, que fundamentalmente garantia a integração social, garantia os bons exemplos. Creio que ele estava certo. Nós ainda temos isso, mas de uma maneira diferente, nas ficções pós-modernas, desde séries, filmes e histórias em quadrinhos.

Eu só estou dando essa opinião porque muitos me perguntaram a mesma coisa, e essa minha opinião é que tudo tem um tempo. O melhor é vocês mostrarem aos seus filhos o que existe. Que há outras religiões, mitos etc. Eu não vejo nada de errado em uma pessoa ter uma religião. Eu sei que muitos dirão “Não! Não! Não os deixe!!!”; mas isso não me incomoda. O que me incomoda é quando usam a religião de forma negativa, como impedir vacinações ou se ensine as bobagens criacionistas. Não é uma questão de Adão e Eva comeram um fruto dado por uma cobra falante e sim achar que eram brancos e de uma raça superior, ou que como era um homem e mulher, que homossexuais devem ser ridicularizados, violentados em seus direitos civis ou mesmo agredidos fisicamente. Expliquem aos seus rebentos o que é um mito, para que servem as histórias, como Hércules, Aquiles etc. São exemplos bons que devemos seguir, de correção, altruísmo, honestidade. Mostre que vemos isso em várias literaturas, desde Jesus falando para não fazer aos outros o que não se quer que seja feito consigo até o Super-Homem, com o poder de um deus, mas escolheu ajudar o próximo.

Não digam simplesmente que é mentira, que é feio etc. Mostrem que não é exclusivo, que Buda no século V A.E.C. já falava as mesmas coisas, que Lao Tsé já pregava a temperança, que muitos filósofos em todas as partes do mundo já falavam de fazer o bem sem querer nada em troca, há mais de 2500 anos! Se seus filhos quiserem colocar um crucifixo e ir a uma obra assistencial, não tire isso deles. Só mostrem que há bons e maus exemplos em todos os lugares. Que enquanto Martin Luther King pregava o respeito mútuo, os maníacos da Inquisição mataram milhões. Enquanto os árabes desenvolveram uma ciência maravilhosa na Idade Média, os psicóticos de hoje pregam um ódio que nem mesmo está no Alcorão. Que enquanto o ateu Bill Gates direciona fortunas para a caridade, o psicótico Pol Pot assassinou milhares de pessoas, onde apenas usar óculos era sinal (ao menos para ele) que tal pessoa era um intelectual e, por conseguinte, inimigo, e merecia morrer.

Porque, no final das contas, o melhor exemplo de justiça, honestidade, perseverança, amor e correção não é um ser divino, um semi-deus, um santo, padre, pastor, babalorixá, cruzes, estrelas de Davi ou livros. Os maiores heróis que um filho pode ter são seu pai e sua mãe. Eu não sei ao certo se eu e minha mulher estamos conseguindo aqui. Eu espero que sim, nos esforçamos para isso. Talvez eu esteja errando em algo, não sei. Talvez esteja acertando muito, também não sei. Nunca sabemos nada com certeza.

Se algum filho seu quiser ir numa missa, leve-o. Se quiser ir num culto evangélico, leve-o. Mas explique os significados. Não deixe que outros o façam. Se você não souber, não finja. Diga "não sei, mas podemos descobrir juntos". O maior professor de uma criança tem que ser o pai e a mãe. Nunca deixe para os outros a maior e mais deliciosa tarefa: ver a criança olhar pra você e querer ser como você.

Eu sei que soa muito mal eu parecer estar ensinando os outros a serem pais. Estou apenas compartilhando o que fiz e faço nestes anos. Vejo tantas crianças largadas, sem carinho, atenção ou amor e elas não pedem muito mais que isso. Minha menina só me dá alegria e espero fazer o mesmo com ela, e eu já vi muitos filhos maltratados por pais idiotas. Mas tenho certeza que você pode fazer um bom trabalho.

Em cordiais saudações, registro meus protestos de saúde, paz e felicidade.

14 comentários em “Carta a um pai cético

  1. Obrigado André,

    de fato uma lágrima escorreu dos meus olhos ao ler este texto, sou jovem (25 anos), mas já sou pai de um meninão de 2 anos,e, um dos meus maiores receios e como fazer um bom trabalho educando-o, já que, a minha visão de mundo, tal como a sua, difere do da maioria. Creio que o que vc faz é o correto, e é o que pretendo fazer. Meu pai tentou se tornar para mim uma figura de autoridade, pregar a obediência cega, a submissão a autoridades sejam elas religiosas ou civis, mas, o que mais desejo, é conseguir transformar o meu filho no meu melhor amigo, desejo que ele tenha para comigo apenas carinho e respeito, jamais medo, e que, se torne um ser pensante, que decida seus caminhos e suas convicções, e que, graças a isso, consiga alcançar a verdadeira felicidade.

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  2. Mesmo não tendo palavras, me senti no dever de registrar o quanto esse texto foi inspirado e inspirador. Sou pai de um menino e uma menina e que céticos seríamos se não garantíssemos aos nossos rebentos um direito que tanto defendemos : a liberdade. Muitos parabéns, André.

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  3. Excelente texto, realmente. Minha filha estuda em um colégio de madres porque é o melhor que meu dinheiro pode pagar e a doutrinação lá é leve. Sempre tento fazê-la pensar por si própria, acho que isso basta.

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  4. PARABÉNS! Meu sincero e profundo parabéns pelo texto.
    Tenho 3 filhos (2 homens e 1 mulher) já beiram a casa dos 30. Foi desta maneira, exposta, que levei a educação deles – até hoje levo. Conclusão, uma é religiosa moderna (não é fanática), um resolveu seguir judaísmo (não sei de onde ele tirou isso) o outro é um cético de fazer inveja ao André. Todos formados em suas profissões preferidas, tem coisa melhor que isso para um pai? Todos são meus melhores amigos.
    Acredito ser esse o caminho exposto no texto.

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  5. O melhor é vocês mostrarem aos seus filhos o que existe.

    Este é o mínimo necessário para se deixar uma mente cética florescer. Algo que não tive. “Você precisa acreditar em um ser superior”, era o que eu ouvia. Mas meu ceticismo não me deixava concordar. “Siga seu ceticismo, mas não deixe de aplicar a educação que te foi dada” talvez seria mais adequado. Liberdade religiosa é necessária, e isso inclui a ausência de religião, em pé de igualdade. Para um cético, religião não deve fazer diferença. Para um religioso, a ausência da mesma também não deveria fazer. Essa simples linha de raciocínio, na prática, teria evitado um punhado de mortes. Religião, ao contrário do que muitos ateus acham, não vai acabar. Mas o dia em que ela for colocada em seu lugar, a de “assunto mais importante dentre os menos importantes”, teremos um ambiente mais harmônico. Bom texto, bem consciente.

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  6. Snif. :cry: Que texto emocionante! Olha, se isso que @André relatou nesse texto, esta conversa livre e aberta, mostrar o que existe e explicar de forma coerente fosse feito pelos nossos compatriotas, certamente nosso país não seria tão intolerante e “mandingueiro” do jeito que é. Uma opinião a respeito do texto? Emocionado, simplesmente emocionado com tudo o que li. Parabéns @André por todo esforço que faz na colaboração com este site e na educação de sua filha.
    p.s. Divulga o blog que eu e minha namorada construímos em colaboração?
    semlendas.blogspot.com

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    1. @Diegow, Desculpa pelo (@). Mas complementando o meu comentário, Estou de pleno acordo com essa matéria do André, visto que é a coisa certa a se fazer. Pensem pessoal, se vocês tiverem filhos, vão querer que eles sejam pessoas de fácil manipulação (Às vezes manipulados por “eles mesmos”, com suas “manias”, muitas vezes sem sentido que até eles mesmos não sabem explicar, pois apenas acreditam?) nas mãos de padres, pastores, médiuns, prefeitos e pessoas que são assim como qualquer um de nós, mas tem um diferencial pois estudaram retórica, táticas de discurso e técnicas de convencimento? Tenho certeza que ninguém quer isso para sua família. Então imaginem uma nação inteira sendo “robotizada”, e quem ousa questionar, procurar saber o porquê, como se faz, enfim raciocinar por si próprio, sem recorrer a “frases feitas no estilo cópia/cola de bíblia” sendo ridicularizado por esses “robôs”. Não quero isto para minha família. Olha André, não o conheço, venho acompanhando suas matérias nesse site faz um bom tempo e vou lhe dizer: Meus parabéns, ótimo site e belas matérias e não sei como você ainda não ganhou um espaço onde pudesse expor essas matérias em público, que não fosse por meio online (Meu palpite é de que para quem detém o poder das redes de rádio e TV, pessoas como você seriam um perigo, no que diz respeito ao alertar as pessoas para o real perigo que é mais destrutivo que qualquer demônio que pastores ousam afirmar que tem o poder de tirar: a própria ignorância, preguiça e pobreza de conhecimento).

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  7. Obrigado pelo texto, André. Organizou e sintetizou aquilo que penso ser a prática mais correta de educação com um filho.
    Obrigado, de novo!

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  8. Acho que é bastante simples já que acho que nascemos cientistas, afinal, crescemos perguntando como e por que. Deixe-as livre e munidas de informação que é impossível que caiam nas armadilhas dogmáticas, onde incluo o dinheiro no atual contexto social.

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  9. Emocionante o texto, parabéns.

    Tenho as mesmas dúvidas com relação às minhas filhas, mas nunca deixo de responder às perguntas delas, mesmo que a resposta seja “não sei”. As vezes procuro respostas na Wikipedia junto com elas, leio, explico, mostro outras opiniões, opções. Tento não sei o pai do “porque sim” como os meus pais foram.

    É maravilhoso ver a cara de admiração de um filho quando damos uma resposta e ouvi-los dizer que quando crescerem querem ser “inteligentes igual ao meu pai”…

    Para elas o que desejo é que sejam pessoas íntegras, céticas (em relação a tudo) e inteligentes, inteligentes de verdade, mais do que eu que, para a decepção delas, não sou lá essa Coca-Cola toda!

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