O Magnífico Sutra do Diamante – O Mais Antigo Livro Impresso do Mundo

Quando pensamos no surgimento dos livros impressos, a primeira coisa que vem à mente é a Bíblia de Johannes Gutenberg. Com certeza, é algo revolucionário que mudou o curso da História na Europa do século XV, e do mundo todo. Mas e se eu lhe dissesse que quase 600 anos antes da prensa de Gutenberg iniciar seu trabalho, um notável pergaminho impresso foi criado na China? Sim, impresso. Ok., não era com os tipos moveis de Gutemberg, mas mesmo assim o Sutra do diamante mudou o curso da História do oriente Distante.

Imagine um mundo onde a Rota da Seda era a super rodovia da Antiguidade, na qual transitava objetos, roupas, especiarias, comida, roupas e… informação. Por ela, ideias e inovações viajavam vastas distâncias, moldando civilizações ao longo do caminho. Neste mundo, aninhado em uma caverna na borda do Deserto de Gobi, jazia um tesouro que permaneceria escondido por um milênio, e era justamente o Sutra do Diamante.

O termo “Sutra” (em sânscrito सूत्र) vem do verbo √siv, que significa “costurar”. Esse conceito designa um tipo de ensinamento religioso em formato textual, originado nas tradições espirituais da Índia, especialmente no hinduísmo, budismo e jainismo. Se fôssemos levar pelo sentido literal, “sutra” significa “corda” ou “fio”. De forma figurada, pode se referir a um aforismo, a uma coleção deles, ou até mesmo a um ensinamento mais longo em prosa, embora possa aparecer em forma de versos curtos, também, muitas vezes esotéricos, e tratam de várias questões da visão hinduísta.

No caso do Sutra do Diamante, não é apenas um texto antigo qualquer. O Sutra do Diamante é o livro impresso datado mais antigo que ainda possuímos, tendo sido composto e impresso em 868 E.C., séculos antes de Gutenberg sequer nascer. Sua descoberta e significância rivalizam com os mais cativantes contos de aventura arqueológica, combinando elementos de espiritualidade, inovação tecnológica e intercâmbio cultural.

A prensa chinesa, inventada durante a Dinastia Tang, no século VII, foi uma das primeiras máquinas de impressão do mundo. Ela utilizava blocos de madeira entalhados para transferir tinta para o papel, um processo conhecido como xilografia. Cada caractere era esculpido manualmente em uma matriz de madeira, que depois era coberta de tinta e pressionada contra o papel.

A fascinante história do Sutra do diamante é, em si mesma, em uma jornada que desafia as percepções de História, Religião e a própria natureza da realidade e humana, já que se acredita que este texto antigo tem o poder de iluminar, não apenas sobre o passado, mas o próprio lugar das pessoas no Universo.

O Sutra do Diamante – conhecido em sânscrito como Vajracchedikā Prajñāpāramitā Sūtra – ocupa um lugar único tanto na literatura budista quanto na História Mundial. Embora a identidade de um certo Wang Jie permaneça um mistério, sabemos que em 11 de maio de 868 E.C. (o 13º dia da 4ª lua do 9º ano de Xiantong no calendário chinês), ele encomendou a um impressor de blocos a criação de um pergaminho de 5,3 metros de comprimento deste texto budista sagrado.

O pergaminho inclui uma inscrição que diz: “Feito reverentemente para distribuição universal gratuita por Wang Jie em nome de seus dois pais.” Hoje, esse pergaminho está guardado na Biblioteca Britânica e é reconhecido como o livro impresso datado mais antigo em existência, antecedendo a prensa de Gutenberg em quase seis séculos.

A criação deste pergaminho impresso ocorreu durante a Dinastia Tang (618-907 E.C.), um período de grande florescimento cultural e artístico na China. O budismo havia sido introduzido na China séculos antes e tinha se tornado profundamente integrado à cultura chinesa nesta época. A produção de textos budistas era vista como um ato meritório, contribuindo para a rápida disseminação e evolução da tecnologia de impressão no Leste Asiático.

Em 1900, um monge taoísta chamado Wang Yuanlu descobriu O Sutra do diamante entre 40.000 pergaminhos e documentos em Dunhuang, na província de Gansu, no noroeste da China, um antigo posto avançado da Rota da Seda na borda do Deserto de Gobi. Estes textos estavam escondidos no que ficou conhecido como as Cavernas de Mogao ou “A Caverna dos Mil Budas”, uma biblioteca secreta selada por volta do ano 1000 E.C. para protegê-la de um reino vizinho ameaçador. Este complexo de grutas abriga 735 grutas que totalizam mais de 45.000 m² de pinturas murais, formando o maior acervo de arte budista do mundo.

O próprio Sutra do diamante é um texto em sânscrito que havia sido traduzido para o chinês por Kumārajīva, um renomado tradutor, em 401 E.C.

Em 1907, o arqueólogo britânico-húngaro Marc Aurel Stein, enquanto mapeava a antiga Rota da Seda, soube da biblioteca secreta. Ele adquiriu milhares de documentos, incluindo O Sutra do Diamante, subornando Wang Yuanlu, que era então o guardião autoproclamado das cavernas. Esta aquisição, embora controversa pelos padrões atuais, trouxe estes documentos inestimáveis à atenção do mundo mais amplo. Hoje, o Projeto Internacional Dunhuang está digitalizando estes documentos, junto com outros 100.000 descobertos ao longo da Rota da Seda oriental, tornando-os acessíveis a pesquisadores de todo o mundo.

O Sutra do diamante, um texto conciso de cerca de 6.000 palavras, pertence ao cânone de “sutras” no Budismo Mahayana – a forma predominante de Budismo no Leste e Sudeste Asiático. Faz parte do gênero mais amplo de literatura budista Mahayana Prajñāpāramitā (Perfeição da Sabedoria), que enfatiza o conceito de vacuidade (śūnyatā) e desapego. Muitos crentes consideram os Sutras Mahayana como ensinamentos diretos do Buda, embora os estudiosos geralmente datem sua composição para vários séculos após a vida do Buda histórico.

O Sutra do diamante é estruturado como um diálogo entre o Buda e seu discípulo, Subhuti. Ao longo do texto, o Buda usa uma série de paradoxos e negações para expor sobre a natureza da realidade e o caminho para a iluminação, enfatizando que todos os fenômenos são, em última análise, ilusórios, ele ensina que a verdadeira iluminação não pode ser compreendida até que se tenha deixado de lado o apego a eles de qualquer forma. Este método de ensino, conhecido como “dialética da negação”, é característico da literatura Prajñāpāramitā.

O título completo, “O Diamante que Corta através da Ilusão”, reflete o tema central do sutra. O texto desafia nossa percepção da realidade: “Pensamos que existimos como indivíduos, mas não existimos. Na verdade, estamos em um estado de completa não-dualidade: não há indivíduos, não há seres sencientes”.

O “diamante” no título simboliza a capacidade do sutra de cortar através da ilusão da existência individual, assim como um diamante pode cortar através de qualquer material. Este conceito de não-dualidade é fundamental para a filosofia budista Mahayana. Sugere que as distinções aparentes que percebemos no mundo – entre o eu e o outro, sujeito e objeto, existência e não-existência – são, em última análise, ilusórias. O sutra visa guiar o leitor para uma realização direta desta realidade não-dual.

Na cultura de Wang Jie, copiar as palavras do Buda era considerado um ato meritório; os monges provavelmente cantavam o sutra regularmente a partir do pergaminho. Esta prática contribuiu para o desenvolvimento inicial da impressão na China, já que, se você imprimir múltiplas cópias do texto, fatalmente você disseminará a palavra do Buda mais amplamente, e assim acumulando mais mérito. Os budistas rapidamente reconheceram o potencial da tecnologia de impressão para este propósito.

O ato de encomendar tal texto era visto como uma forma de gerar “bom karma” (dharma) não apenas para si mesmo, mas também para os membros da família, tanto vivos quanto falecidos. Isso explica por que Wang Jie dedicou a impressão a seus pais, uma prática comum nas culturas budistas.

O Sutra do diamante teve uma profunda influência no pensamento e prática budistas, particularmente no Leste Asiático. Seus ensinamentos sobre desapego e a natureza ilusória dos fenômenos moldaram o Budismo Zen (Chan) e continuam a ser estudados e contemplados pelos praticantes até hoje.

Além de seu significado religioso, o status do Sutra do diamante como o livro impresso datado mais antigo o torna um artefato crucial na história da comunicação humana e disseminação do conhecimento. Ele se destaca como um testemunho do estado avançado da tecnologia de impressão chinesa no século IX e o importante papel que as instituições budistas desempenharam no desenvolvimento e disseminação desta tecnologia.

Em suma, o Sutra do diamante é o encontro da moderna tecnologia (de sua época) com os saberes ancestrais, pois, só assim seria possível que a Palavra fosse expandida. Se você acha que isso é pouco ou não tão importante, lembre-se que a larguíssima maioria de textos produzidos na Antiguidade se perdeu nos éons do Tempo, e o prognóstico de encontrarmos estes textos é praticamente nula. Felizmente, senhores, os chineses tinham a tecnologia.

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