A Festa de Saturnália

Olhando para a rica tapeçaria cultural da história romana, mergulhamos nas tradições festivas que marcam, marcaram e continuarão marcando a História Humana como um dos períodos mais notáveis do calendário e uma festividade sem igual, celebrando um evento que culmina na penúltima semana de dezembro. Um evento com trocas de presentes, festividades e, claro banquetes reunindo famílias e amigos.

Sim, estou falando de uma das principais festas da História Humana. Uma festa comemorada no final do ano e sem igual, com festejos diversos e demonstrações de igualdade e fraternidade.

Claro, estou falando da Saturnália. O que você achou que era?

A Saturnália era mais que uma celebração, era um evento! Estendendo-se de 17 a 23 de dezembro, a Saturnália encapsulava uma exuberante mistura de várias comemorações, algumas delas pegas de outras culturas, porque os romanos adoravam fazer milk shake cultural. A Saturnália era uma prática antiga mesmo na Roma Antiga, desde antes da República até a Antiguidade Tardia. O controverso (mesmo para padrões romanos) poeta romano Caio Valério Catulo, em sua poesia, a descreve a Saturnália como

Grandes deuses, livrinho terrível e detestável!
Que você evidentemente enviou ao seu Catulo
continuamente, para que ele morresse
no dia do festival da Saturnália, o melhor dos dias!

Na sua obra Ab Urbe condita libri, o historiador Tito Lívio registra rituais sagrados no templo de Saturno, em Roma. Ele descreveu os sacrifícios que deveriam ser realizados, a festa pública, e como o grito da Saturnália deveria ser bradado em toda a cidade por um dia e uma noite, e as pessoas deveriam mantê-lo como um dia sagrado para sempre.

Durante as comemorações da Saturnália, havia trocas de presentes, festas e a reconstituição do ritual solene realizado pelo grupo Sodales na vila de Maxêncio (não o que enfrentou Constantino) ao longo da Via Appia. Mas fica difícil descrever em detalhes como era a Saturnália, sendo praticamente impossível ter uma imagem precisa da festa, uma vez que ela evoluiu ao longo desse período, praticamente angariando elementos novos a cada ano.

Por exemplo, no século II, Luciano de Samosata registra as atividades durante as Saturnálias, beber até não poder mais e estar bêbado, barulho, jogos de dados, eleger um “Rei da Saturnália” (Saturnalicius Princeps) – selecionado entre os membros menos importantes da família para presidir o festival e recebeu o direito de realizar travessuras despreocupadas – e banquetes de escravos, cantar nus, bater palmas com mãos trêmulas e abaixar-se ocasionalmente seus rostos em água gelada. Parece até uma descrição do nosso carnaval, que tem raízes semelhantes, já que é outro festejo com a mudança das estações.

Aliás, por falar em Rei da Saturnália, teve um certo sujeito que foi eleito e aproveitou a oportunidade. No caso, estamos falando de Nero; e como Rei da Saturnália, nosso amigo Nero desempenhou esse papel em sua juventude e humilhou seu tímido meio-irmão Britannicus. Mas isso foi algum tempo antes de mandar envenená-lo para ter certeza que ele seria o imperador, o que logrou êxito.

De qualquer forma, Luciano de Samosata também observou que mesmo alguém sendo um monarca absoluto poderia fazer o papel de escravo e “alguém sem ser nada na sociedade romana poderia dar comandos ridículos e obrigar qualquer um a fazer qualquer coisa”. Um deve gritar uma calúnia contra si mesmo, outro deve dançar nu, ou pegar a flauta e sair tocando-a três vezes pela casa.

Sim, era uma inversão de papéis total, regado a muito vinho e pouca vergonha. Ou seja, um festejo romano como outro qualquer.

Macróbio Ambrósio Teodósio – um provincial romano que viveu durante o início do século V – registrou que, durante a festa, eles primeiro homenageavam os escravos com o jantar preparado como se fosse para o senhor da casa, e só depois uma mesa é novamente posta para o chefe da família. Portanto, não é tanto de acordo com Macróbio que o senhor serve o escravo, mas sim que o escravo age como se fosse o senhor ao ser servido primeiro.

Por que ocorria essa inversão de papéis? Essa foi uma válvula de escape para todos no final do ano. Até os escravos tinham algo pelo que ansiar, e as tradições, segundo os romanos, remontam a tempos anteriores, muito antes da fundação de Roma, quando havia uma sociedade sem escravos governada por Saturno.

Outro ponto é que, como rolava festa a semana toda, os tribunais ficavam fechados, as escolas eram encerradas e as execuções eram temporariamente suspensas; tudo isso em honra a Saturno, cujas imagens remetem a um deus segurando uma foice dada por sua mãe; e com essa foice Saturno mutilou o pai, Urano.

Foi dessa forma que Saturno tomou o poder entre os deuses, mas essa foice – dada a sua natureza enquanto ferramenta – faz de Saturno também uma divindade agrícola, que também está ligada ao submundo. Sim, eu sei. Kibaram a mitologia grega. Nada a se ver de novo por aqui.

Assim, no final do ano, além dessa lembrança do sangue derramado por Saturno, que o amarrou ao deus do submundo, Plutão, também foi marcado no final do ano por sacrifícios sob a forma de luta de gladiadores e outras oferendas de sangue aos deuses do submundo, marcando o fim do ano civil. Este festival andava de mãos dadas com o festival da Saturnália, um emendando o outro logo em seguida.

Saturno, o deus que depois ficaria um luxo com anéis, também é um deus da luz e a ele também foi associado a Sigillaria no final das Saturnálias, a festa que inclui a troca de velas, pois, a luz de Saturno ilumina o caminho. No dia 17 de dezembro, os romanos recordavam a fundação do templo de Saturno nas encostas do Monte Capitolino, que remonta ao início do século V A.E.C. O que hoje são as encostas do Capitólio é na verdade a última reconstrução do templo, que também abrigava o tesouro de Roma.

No interior estava a estátua de culto em marfim, segundo Plínio, cheia de óleo para evitar que se deformasse, e suas pernas eram amarradas com lã, simbolicamente liberada nas Saturnais. Essas amarras de lã foram removidas, sublinhando a libertação de todos. É hora de soltar o cabelo.

Este já era o início das festividades, a veneração pública de Saturno neste templo no dia 17 de dezembro. O que acontece depois? Em casa, comemora-se tomando banho frio de madrugada, segundo Tertuliano. Faz-se um sacrifício de um leitão no altar da família, uma típica oferenda aos deuses do submundo.

O dia 25 de dezembro também foi identificado no calendário romano como o solstício de inverno, o dia mais curto do ano no hemisfério norte. A esse Sol Invictus foi atrelado uma divindade muito popular junto aos soldados romanos: o Culto a Mitra. Então, temos diferentes comemorações, uma seguida da outra, em que o pessoal não parava de fazer o festão.

Dessa forma, a passagem para o festival da Saturnália foi a antecipação e a experiência do dia mais curto do ano e o início dos dias mais longos, acabando por incorporar no papel deste festival o deus Sol Invictus, o invencível deus do sol, pelo menos no terceiro século E.C.

Se não ficou claro, vou ter que reforçar: Roma fica na atual Itália, que fica na Europa, que fica no Hemisfério Norte. Lá é inverno, enquanto aqui começa o verão.

Então, temos uma festividade em dezembro falando de um deus que ganhou um presente de sua mãe, venceu todos os demais deuses, cuja festa tem troca de presentes e banquetes, com sacrifícios de animais em um jantar monumental, cheio de comida e bebida, em que senhores servem escravos, que uma vez no ano são tratados feito gente, para depois ter relação com um deus solar e outro guerreiro que veio salvar todo mundo.

Imaginem se alguém kiba de novo esta festa e associa a… sei lá… um outro deus?

Feliz Saturnália a todos!

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