Os Horrores da Ilha da Morte

O sol se levanta e lança a sua causticante luz dourada por sobre a ilha. Seria mais um dia lindo e brilhante em qualquer ilha, mas não aquela. Ali não é um lugar comum, pois, há segredos escondidos em cada canto, embaixo de cada pedra, em cada reentrância, onde o mal parece espreitar, sussurrando coisas horrendas e inaudíveis, em que você apenas sente um horror crescente sem saber o motivo, embora o inconsciente berre aos seus ouvidos que o seu lugar não é ali. O ar é pesado, a respiração é cada vez mais difícil e se você tivesse permissão de estar ali, não faria uso dessa permissão por muito tempo, pois, com certeza, sairia dali correndo, com o bom senso comandando suas ações, mesmo que a parte consciente indague o porquê desta sensação.

Existem lugares sinistros, tão sinistros que fariam Stephen King ter pesadelos. Alguns lugares, há muito abandonados, parecem transpirar o mal em cada canto. Um desses lugares é uma ilha isolada na Lagoa de Veneza: a Ilha Poveglia.

Localizada nas coordenadas 45°24’21” N 12°19’48” E, Poveglia flutua em nossa existência como um enigmático território no coração da Laguna Veneziana, transcendendo os limites entre a realidade histórica e a mitologia contemporânea. Sua geografia física, fragmentada por um pequeno canal que divide a ilha em duas seções distintas, serve como metáfora perfeita de sua natureza dual – simultaneamente testemunha histórica e território mítico. sua extensão? Apenas 72.788 m² (cuidado com as transformações. Não é o mesmo que 72,788 km²).

Mas Poveglia não é apenas um local geográfico, um ponto num mapa, um lugar em nossa dimensão. É um palimpsesto de experiências humanas; um território funesto onde história, mito, trauma e memória se entrelaçam em uma composição única, desafiando as fronteiras entre o documentável e o imaginário, entre a História e a Fábula. Um lugar situado entre Veneza e Lido, emergindo como um testemunho silencioso das complexas dinâmicas sanitárias, sociais e geopolíticas que moldaram o desenvolvimento da República Veneziana, revelando camadas de vulnerabilidade e resiliência.

A ilha tem uma história longa e sombria, que remonta ao Império Romano e entra em nossos dias atuais carregando uma mistura de horrores que, ao longo dos anos, serviu a muitos propósitos, mas acabou abandonada e fora dos limites para quem for audacioso ou mesmo insensato, embora muitos turistas desejem visitar este lugar lúgubre, mas instigante, o qual até hoje atrai qualquer pessoa interessada no passado nebuloso daquele local esquecido por todos os deuses de todas as religiões. O nefasto parece atrair pessoas como as luzinhas azuis atraem insetos.

Os primeiros registros históricos situam Poveglia no ano 421 E.C., quando populações de Pádua e Este buscaram refúgio enquanto a cidade foi atacada por Alarico, o Godo, e Átila, o Huno. Durante séculos, a ilha experimentou ciclos de povoamento e abandono, refletindo as turbulências geopolíticas que caracterizaram a região norte da Itália. No entanto, os historiadores especulam que os habitantes conhecidos como Euganei podem ter usado a ilha por volta de 2.000 A.E.C. A localização da ilha na lagoa em relação às outras ilhas facilita a defesa, e os moradores viveram pacificamente até o século XIV E.C.

Poveglia era um centro próspero, tanto do ponto de vista econômico como demográfico. As famílias locais (Musso, Boyso, Barbalongolo etc.) dedicavam-se à pesca e à salga, com interesses também em Chioggia e Pellestrina. Ao nível eclesiástico, pertencia à igreja paroquial de San Vitale. A prosperidade do centro alçou voo durante o Doge de Bartolomeo Gradenigo, cuja jurisdição também se estendia pelas vizinhas Malamocco e Pellestrina.

O declínio de Poveglia começou em 1379 com a Guerra de Chioggia, quando Veneza era uma potência significativa e decidiu evacuar a população da ilha maldita para Giudecca, já que o governo veneziano precisava de um local próprio para combater a invasão da frota genovesa. Isso forçou a população a abandonar tudo, marcando um ponto de inflexão em sua trajetória populacional. Foi construída uma fortificação octogonal completa, o que permitiu que Veneza controlasse a lagoa de uma cômoda posição defensável, mas a ilha ainda passaria por outros problemas, já que, ainda no século XIV, veio a pandemia da Peste Negra – que por sinal estava fazendo um estrago na Europa continental – e a Ilha Poveglia tornou-se, então, uma colônia de peste. O que era uma solução temporária para o número esmagador de população infectada mais tarde se tornou uma solução permanente.

A praga varreu Veneza algumas vezes, mas após a primeira ocorrência em 1348, a cidade sabia mais sobre como a doença se espalhava e agiu de acordo. Naquela época, metade da população sucumbiu à doença e os sobreviventes aprenderam mais ou menos como a doença se alastrava. Quando a segunda onda da peste devastou o país novamente, levou consigo o então governante de Veneza. No início, eles despejaram os cadáveres infectados em dois cemitérios separados fora dos limites da cidade. No entanto, os venezianos tiveram que tomar medidas mais drásticas quando os enormes poços transbordaram de mortos. O governo então exilou todas as pessoas infectadas para a Ilha Poveglia e as ilhas menores, criando o Lazzaretto (um leprosário).

Embora não esteja oficialmente associado a Poveglia, Lazzaretto Vecchio foi outra ilha menor e a localização do primeiro lazzareto. As condições eram tão deploráveis neste lugar que um cronista do século XVI chamado Rocco Benedetti menciona que pelo menos 500 pessoas por dia morriam em Lazzaretto Vecchio, e isso o lembrava do Inferno.

O que o governo veneziano fez foi transformar Poveglia em um depósito de gente e mandando para lá os cidadãos infectados; durante esse tempo, as autoridades despacharam grandes barcaças de vítimas mortas para Poveglia e largarem lá, como um depósito de lixo. Ao mesmo tempo, funcionários do governo também enviaram qualquer pessoa suspeita de ter sintomas de peste para a ilha. Ao todo, as autoridades deixaram mais de 100.000 a 160.000 pessoas na ilha, tornando-a um lugar funesto e aterrorizante. As condições na ilha eram insalubres e as vítimas da peste – mesmo as que ainda tinham alguma possibilidade sobrevida – foram deixadas para morrer. Geralmente, a população infectada teria que esperar 40 dias para morrer ou se recuperar, mas isso raramente acontecia.

A ilha logo ficou conhecida como a “Ilha da Morte”.

Para coroar a selvageria das decisões governamentais, não eram só indivíduos doentes que iam para a Ilha da Morte. Cidadãos que cometessem quaisquer tipos de crimes, o governo os enviaria para a Ilha Poveglia para viverem o resto de seus dias lá, o que não ia durar mais que algumas semanas. Havia tantas pessoas mortas, moribundas e doentes na ilha que se tornou um desafio enterrá-las todas. A história diz que os trabalhadores passaram dias inteiros carregando e jogando corpos em pilhas em Poveglia sem pausas, sendo que esses trabalhadores, como entraram em contato com corpos de gente infectada, eram proibidos de sair de lá. Ilha Poveglia era uma passagem só de ida.

O excesso de corpos e falta de locais para enterrar chegou em um ponto que os venezianos foram forçados a começar a queimar os corpos para evitar que a praga se espalhasse e abrir espaço para mais vítimas. Devido à natureza da doença, aqueles que estavam doentes demais para falar eram frequentemente confundidos com mortos e queimados vivos. Cinzas caíram do céu e a fumaça dos corpos em chamas sufocou e poluiu o ar.

A queima consistente de vítimas da peste e o grande número de pessoas infectadas geraram um boato entre as futuras gerações de venezianos. De acordo com a história, o solo da Ilha Poveglia é 50% de cinzas humanas devido à queima constante de corpos. Mesmo que isso seja falso (provavelmente, mas não está muito longe da verdade também), ainda é um pensamento aterrorizante. Uma escavação arqueológica revelaria mais tarde os restos mortais de 1.500 vítimas que morreram da peste.

Os cientistas acreditam que o lazzareto continha mais restos mortais do que encontraram na época. Até hoje, ossos humanos carbonizados ainda aparecem nas margens de Poveglia. Não surpreendentemente, os pescadores evitam Poveglia por medo de puxar ossos humanos em suas redes.


Não perturbe! Aqueles que em vida se contaminaram descansam aqui. 1793

A partir de 1776, Poveglia transformou-se em um crucial ponto de controle sanitário, sob jurisdição do Magistrato alla Sanità. Sua função primordial era estabelecer um rigoroso sistema de quarentena para navios e pessoas que chegavam a Veneza, especialmente durante períodos de epidemias. O problema é que a Peste voltou no ano seguinte e dizimou a população mais uma vez. Desta vez, Poveglia era o único local de um posto de controle para navios que passariam por Veneza a negócios. Assim, qualquer navio que se dirigisse a Veneza tinha que passar por inspeções rigorosas, que muitas vezes causavam atrasos e disputas. Em 1790, dois barcos não conseguiram passar nos exames e, assim, Poveglia ficou conhecida como a “Ilha da Morte” pela segunda vez. Sob o governo de Napoleão, a ilha foi usada permanentemente para fins de colônia de isolamento até o fechamento do hospital em 1814.

Os venezianos abandonaram a ilha em 1868 depois que as autoridades decidiram que não era mais necessário ter uma estação de quarentena. Os venezianos também concordaram agradecidos, ainda mais pelo fato de que não teriam mais que lidar com o cheiro de corpos queimados e das vítimas da peste. A ilha foi essencialmente largada de canto, deixada para apodrecer e decair.

Em 1922, Poveglia passou por uma ressignificação institucional ao ser convertida em um asilo psiquiátrico. Se antes era ruim, acharam por bem piorar, já que o lugar troca de alcunha. De Ilha da Morte, passou a ser vista como o Inferno na Terra, logo se tornando conhecida por seu tratamento desumano. O governo reaproveitou os prédios para alocar pacientes com doenças mentais. Várias fontes afirmam que o hospital foi supervisionado por um homem conhecido simplesmente por “Dr. Paolo”, e não deveria nada a certos sujeitos alemães que adoravam fazer experimentos com pessoas.

Este período representa um capítulo particularmente sombrio (mais do que até então) em sua história, caracterizado por práticas médicas questionáveis e condições precárias de tratamento dos pacientes. Relatos sugerem experimentos médicos controversos, incluindo supostas lobotomias rudimentares, que era essencialmente martelar um espeto pelo globo ocular até ele acertar a parte do cérebro a ser “curada”. Na época, a doença mental não era tão claramente definida como é hoje. Portanto, o hospital era o lar de muitos pacientes com deficiências físicas, distúrbios psicológicos e problemas neurológicos. Tinha de tudo lá, todos os indesejáveis que traziam vergonha às famílias aristocráticas eram mandados para lá e esquecidos. Poveglia logo se tornou um lugar de pesadelo.

O terrível Dr. Paolo era conhecido por realizar outros tratamentos bárbaros e torturantes em seus pacientes, como choques elétricos e alimentação forçada. Uso de choques elétricos é algo que até hoje se emprega com resultados muito promissores, mas o que o Dr. Paolo fazia não era ciência nem tratamento médico. Não havia critério em sua psicopatia. O Dr. Paolo realizava as lobotomias usando martelos, cinzéis e brocas sem se preocupar com anestesia ou limpeza. Algo digno dos mais horríveis filmes tipo slasher.

Como antes, ser enviado para Poveglia era uma sentença de morte e não havia chance de reabilitação dos pacientes que tiveram a desventura de serem mandados para lá. Os pacientes eram frequentemente acorrentados às suas camas ou deixados em quartos escuros por vários dias; muitos deles morreram sob os cuidados do famigerado Dr. Paolo e seus corpos foram enterrados em sepulturas não identificadas na ilha, e até hoje não se sabe onde estão. Relatórios indicam que o Dr. Paolo mais tarde seria descoberto morto perto da torre localizada na ilha. Os relatos apontam que o médico pulou da torre do sino na década de 1930, após alegar que havia enlouquecido por causa dos fantasmas que o assombravam. Décadas depois, moradores próximos alegaram ainda ouvir o sino, embora ele tenha sido removido muitos anos antes.

Em 1968, o hospital fechou e foi abandonado novamente, e logo os prédios foram deixados em decadência e desmoronamento. Independentemente da história sombria de Poveglia, o governo tentou encontrar compradores para a ilha ao longo dos anos. As tentativas contemporâneas de revitalização – como o frustrado leilão em 2014 por Luigi Brugnaro e o projeto subsequente do grupo Poveglia per Tutti – revelam uma tensão constante entre preservação histórica e especulação econômica. Finalmente, os venezianos conseguiram vender a ilha a um proprietário privado com planos de redesenvolvimento. A venda da ilha causou muita preocupação entre o público, pois eles temem que o novo proprietário explore o passado sombrio da ilha e a transforme em uma bizarra atração turística.

Arquitetonicamente, a ilha preserva cicatrizes de suas múltiplas funções históricas: o forte octogonal, remanescentes de um hospital psiquiátrico, ruínas de uma igreja medieval e vestígios de estruturas administrativas. Cada construção sussurra narrativas de isolamento, sofrimento e abandono. As camadas arqueológicas de Poveglia são testemunhos de uma realidade que transcende metáforas, transformando a ilha em um território abjeto de memória traumática. Os campos e árvores que hoje cobrem parcialmente o território crescem sobre um substrato de centenas de milhares de corpos, silenciosamente testemunhando as cicatrizes de epidemias e negligência institucional.

A reputação de Poveglia a transformou em um centro de atividade paranormal. Nos últimos anos, a mal afamada ilha desenvolveu um nome para si mesma como um dos lugares mais assombrados do mundo. Poveglia tem sido frequentemente tema de programas de televisão, destacando o potencial de atividade paranormal na ilha. A ilha até se tornou tema de programas de TV como Ghost Adventures e Scariest Places On Earth. É um lugar envolto desconfortável, apavorante, ornado com um véu abjeto – profano, até – de mistério e terror. Visitantes e caçadores de emoção costumam visitar a ilha, na esperança de vislumbrar um dos fantasmas que dizem assombrá-la. Muitas histórias e lendas de assombrações na ilha e os espíritos das vítimas da peste exiladas na ilha ainda permanecem lá hoje.

Um exemplo do fascínio mórbido, foi o acontecido em 2016, quando alguns turistas americanos foram pegos tentando entrar furtivamente na ilha no meio da noite. Bombeiros foram enviados à ilha para resgatá-los quando um barco que passava pôde ouvir seus gritos. Portanto, é fácil ver por que Poveglia desenvolveu sua reputação particular. Com a história aterrorizante da ilha, não é de admirar que seja ilegal visitar a Ilha Poveglia sem permissão especial do governo.

Então, até que Poveglia seja adequado para outra coisa, será um lugar escuro e assombrado. E mesmo que arrumem um outro empreendimento, não adianta. Aquela zona de encontro de a morte, o desespero, a selvageria e o descaso ainda permeará o imaginário de todos. E tudo o que está lá, tudo o que aquela ilha amaldiçoada representa, ainda fará parte da cultura local por muitos e muitos anos.

Não, eu não invejo quem mora lá ou quem visita. Não tenho medo dos fantasmas, mas do que o ser humano foi capaz de fazer ontem, sabendo muito bem que será capaz de fazer de novo.

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