Nefertiti: Rainha, Poder e Mistério

Os pés mundanos caminham pelo terreno outrora sagrado. A luz intensa açoita quilômetros e mais quilômetros quadrados em volta e nada demais aparenta. Apenas deserto, areia, cascalho e pedras, mas há muito mais que os pobres olhos humanos podem ver. Os pés cautelosos temem estragar algo importante, algo irrecuperável se destruído, enquanto outros pés despreocupados caminham pela região, pouco importância dando. Apenas pagaram, faça-se o serviço, e apenas isso.

Entra-se numa casa que já não é mais uma casa, mas restos de escombros devorados pela areia indiferente às idiossincrasias cronológicas dos humanos. Mãos pecaminosas escavam a areia e cascalhos depositados por muito, muito tempo. O Sol implacável transforma tudo num braseiro escaldante, mas as mãos que cavam estão acostumadas com a inclemência do deserto, com o calor e o vento que carrega areia cortante. Por fim, os deuses resolvem colaborar e o que antes estava enterrado por milênios revê a luz do dia. Os finos traços, o olhar penetrante, a boca bem delineada, o queixo decisivo e toda a cabeça encimada por uma coroa azul não deixam a dúvidas: é ela, a Rainha. A Rainha Nefertiti.

Iniciando pelo início

Neferneferuaten Nefertiti foi uma das mais icônicas rainhas do Egito. Talvez, não tão famosa quanto Cleópatra (estou me referindo à 7ª, a Cleópatra Filopátor), mas a bem da verdade, Cleópatra não mandava em nada. Era apenas lanchinho dos romanos. Já Nefertiti era extremamente poderosa, rainha de um império de verdade, não aquele bairro de subúrbio do Império Romano.

Neferneferuaten Nefertiti significa “Lindas são as Belezas de Aten”, em que Nefertiti significa simplesmente “a Bela chegou”, e como ela era bela! Esposa de Akhenaten (ou Akenaton, que é como vou chamá-lo a partir de agora), Nefertiti nasceu em algum momento do ano 1370 AEC e morreu, segundo se presume, no ano 1330 AEC. Não se sabe quando Akenaton nasceu, só que assumira o trono da 18ª Dinastia (os egípcios não contavam os anos como nós. Seu sistema de datas era mediante a dinastia reinante) em 1353 AEC – e mesmo esta data é passível de debate mediante o que eu acabei de falar – com o nome de Amenhotep IV ou, na versão em grego, Amenófis IV. Amenhotep significa “Amon está satisfeito”, mas ele não manteria este nome por muito tempo.

Vocês aprenderam no colégio que o Egito Antigo era politeísta. Vocês sabem, tinha deus-falcão, deus-chacal, deusa-gato, deusa-hipopótamo etc. Acima de todos eles, tinha Amon, o Deusão Poderosão. Só que depois de 5 anos de reinado, Amenhotep resolveu promover uma reforma religiosa e deu fim no politeísmo na base da canetada (ou penada), instaurando o monoteísmo venerando Aton (vou deixar “Aten” para o original em egípcio. Em português vai Aton, mesmo), o Deus-Sol, um deus único e poderosão. Uma espécie de Amon 2.0 que dominou geral e acabou com todos os outros, embora Amenhoptep IV não ter criado este tipo de mitologia. Ele simplesmente disse “o Deus Verdadeiro é Aton e fim de papo”; então, muda o próprio nome para Akenaton, que significa “Efetivo para o Aton”, seja lá o que isso queria dizer.


Akenaton (esfinge) iluminado pelo deus Aton

Akenaton morreu em algum momento entre 1336 e 1334 A.E.C. mas até este momento, pode-se dizer que ele tocou o terror no Egito com uma profunda reforma religiosa, mudando a capital para uma cidade que ele mesmo fundou, que como reza a boa humildade dos poderosos, chamou-a de “Akenaton”, localizada no que hoje tem o nome de Amarna (nome que passarei a usar agora para não confundir com o rei), distante 402 km ao norte da antiga capital Tebas (atualmente Luxor) e 312 km ao sul do que hoje é o Cairo. É nesta cidade que Akenaton começa a sua veneração a Aton, o Deus-Sol, com sua principal esposa Nefertiti ajudando nos serviços. A cidade era inteiramente devotada à veneração de Aton. Os templos eram abertos para serem iluminados pelo Grande Deus e Akenaton e Nefertiti passavam grande parte do dia venerando e conduzindo ofícios em honra ao grande deus.


Modelo de como seria a cidade de Akenaton, hoje Amarna

Entretanto, há coisas a serem apontadas entre o casamento de Akenaton e Nefertiti.

Primeiro de tudo, Neferneferuaten Nefertiti não é o nome de nascença da referida rainha. Qual era, ninguém sabe; o que se sabe é que este nome faz referência a Aton, então, é certo que ela passou a ser chamada assim depois da reforma religiosa. Em segundo lugar, sim, você leu certo logo acima. Akenaton não era casado com Nefertiti apenas. Ela possuía o título Grande Esposa Real, isto é, é a “fiel”, mas Akenaton ainda era casado com outras, como Tadukhipa, Kiya e uma certa irmã que não se sabe o nome e se sabe menos sobre ela do que as outras duas, das quais não se sabe muito. O que se sabe com certeza é que os laços entre Akenaton e Nefertiti eram muito mais fortes.


Akenaton, Nefertiti e filhos

Não é muito comum o dia a dia conjugal ser representado nos murais de templos e palácios egípcios; no caso do casal Akenaton-Nefertiti, isso é bem comum. São momentos em que eles estão sentados como que conversando, ou ele a levando para passear de biga, ou ela colocando-lhe um colar, os dois de mãos dadas. Isso nunca tinha sido visto antes.


Akenaton e Nefertiti

Com o passar do tempo, as coisas começaram a ficar mais esquisitas. O problema de um sistema religioso em que o rei é o chefe da religião é que o que ele manda, todo o reino tem que seguir. Se o rei Akenaton falou que agora todo mundo ia venerar o Sol, como único deus, todo mundo teria que seguir isso, inclusive os sacerdotes, e bem sabemos que líderes religiosos não gostam de pouca mudança, e piora quando é muita mudança e catastrófico quando é uma mudança radical como essa.

Então, temos a parte nebulosa. O que aconteceu com eles? Que fim levou Akenaton e Nefertiti? A resposta é um mistério insolúvel até hoje, mas como mostrarei um pouco mais para frente, não é o único mistério nesta história. Da antiga cidade Akenaton, atual Amarna, nada restou muito. Tudo pareceu ser soterrado deliberadamente, varrido da História. O lugar que deveria ser a tumba está destruído.

Por causa dos ladrões, os sacerdotes passaram a mover as múmias de um lado para o outro esporadicamente, mas por causa do que aconteceu em Amarna isso é incerto, porque parece que tudo foi destruído de propósito. Os murais, afrescos e estátuas parecem ter sido destruídos como por vontade de apagar a história vergonhosa, porque é assim que eles faziam naquele tempo.

E tudo isso aconteceu e foi perdido, abandonado. As areias do tempo, a erosão, as rochas e a poeira do esquecimento tomaram para si e cobriram o Egito, e ano após ano, década após década, século após século, milênio após milênio, tudo ficou encoberto pelas brumas amnésicas da história que ninguém mais conhecia, até que os pés de um arqueólogo pisou novamente naqueles lugares.

Em busca dos reis perdidos

Ludwig Borchardt nasceu em Berlim, em 5 de outubro de 1863. Borchardt não era historiador nem arqueólogo de formação. Ele era um arquiteto, e isso fez toda a diferença como vocês verão mais adiante. Borchardt estudou egiptologia com um dos mais renomados egiptólogos da Alemanha, Johann Peter Adolf Erman. Erman foi fundador da Escola de Egiptologia de Berlim, tendo iniciado e dirigido o projeto Dicionário da Língua Egípcia, o Neuägyptische Grammatik, que tratava dos textos escritos no dialeto vulgar durante as Dinastias XVIII a XX, período que ficou conhecido como Novo Império, que durou de cerca de 1539 a 525 A.E.C., quando os reinos do Alto e Baixo Nilo foram unificados num só império.

Em 1895, Erman convenceu Borchardt para ir ao Egito como membro da Academia Prussiana de Ciências, integrando uma equipe internacional envolvida em medidas de estabilização na ilha do templo de Philae, ameaçada pela construção da primeira represa perto de Assuã.

Borchardt foi ficando, foi ficando e cada vez mais interessado pela cultura do Antigo Egito, acabando por supervisionar o trabalho do catálogo geral das antiguidades que iam sendo encontradas. Em 1899, de novo por instigação de Erman, Borchardt se tornou o adido científico não diplomático do Consulado Geral da Alemanha no Cairo. Em 1906 fundou o independente Instituto Imperial Alemão de Arqueologia Egípcia no Cairo, do qual foi nomeado diretor em 1907.

Em dezembro de 1912, Ludwig Borchardt fez a descoberta que escreveria seu nome na posteridade. Ele e sua equipe estavam escavando a cidade de Amarna. Os relatórios de escavação de Borchardt são uma obra prima já que, sendo arquiteto, ele desenhava as plantas de todo o complexo.


Planta do local de escavação feita por Borchardt

Entre os vários locais que Borchardt escavou no local, uma das residências chamou muito a atenção. A casa foi identificada como pertencente a um escultor chamado Thutmose (Tutmés, aportuguesando), e não deve ser confundido com o rei Thutmose que vivem entre reinou de 1494 a 1482 A.E.C. e os outros dos “Thutmoses”.

E aqui começa uma outra história de mistério, com reviravoltas e investigações, com direito a CSI e tudo.

Em uma das salas da casa de Thutmoses, segundo a descrição do próprio Borchardt, a equipe de escavação encontrou mais de vinte moldes de gesso incompletos ou mal esboçados, cabeças de pedra concluídas e outras ainda por terminar, quase nenhuma delas estava totalmente intacta; até que algo no solo chamou a atenção. Era algo como um “pescoço cor de pele” nos escombros. Os escavadores deixaram de lado as ferramentas e primeiro revelaram a parte inferior do que parecia ser um busto e depois algo na cor azul. Com muito cuidado, eles desencavaram isto:

O Busto de Nefertiti

O chamado “Busto de Nefertiti” em questão não é a rainha Nefertiti pagando peitinho, mas sim uma escultura da parte superior do tronco da referida rainha, e isso porque especula-se que é a referida rainha. Pois, é! É na base do “deve ser”. Como podem ver, a escultura está linda, maravilhosa e praticamente intacta. Borchardt notou que as cores ainda estavam tão brilhantes que pareciam ter sido “pintadas de fresco”, isto é, recém pintadas.

A escultura tem 48 cm de altura e pesa cerca de 20 kg; é bem pesada porque é feita calcário, uma rocha bem dura e um tanto difícil de ser trabalhada. Por isso, os egípcios usavam uma técnica engenhosa: faziam a escultura principal, cobriam e modelavam com gesso, que é melhor para o molde e para o alisamento e delineamento de traços finos. Por fim, era pintado com pigmentos disponíveis.

Para a cor azul, usou-se a chamada “frita azul” ou “azul egípcio”, produzido por meio de aquecimento intenso de quartzo, cal, um composto de cobre (normalmente, óxido de cobre II) em um meio alcalino. A corda da pele é obtida com um corante avermelhado à base de óxido de ferro III. O amarelo dos detalhes da coroa real foi feito à base de sulfeto de arsênio, o verde foi feito com uma mistura de sais de cobre I e óxido de ferro II. A cor preta foi feita com carvão em pó misturado com cera e o branco simplesmente era giz.

O Busto de Nefertiti tem uma linda coloração de pele meio morena a um marrom médio, o que já gerou discussões sem sentido sobre a etnia da rainha, sobre o que não perderei meu tempo.

O olho direito da escultura é feito de calcário com cristal de rocha incluído para a pupila e a íris, sendo finamente trabalhado para dar expressividade ao rosto, com um queixo erguido como uma pessoa que sabe o que quer e fará de tudo para conseguir. O rosto é perfeitamente simétrico, aparecendo como com a maquiagem usada na época. Sim, havia maquiagem no Antigo Egito. As mulheres e os homens, aplicavam ao redor dos olhos uma linha de kajal (também chamada de kohl), um composto à base de minerais misturado com gordura animal que escurecia os olhos. Não só pelo motivo estético, mas por estarem num lugar imensamente banhado pela causticante luz do Sol, era uma necessidade. As mulheres ainda usavam ocre misturado com óleos e gorduras como batom, e pó como blush.

O busto da rainha é encimado por um coroa real de cor azul, o que denota realeza e custo da peça – já que corantes azuis eram muito caros por serem difíceis de serem obtidos –, com uma faixa dourada na altura da testa e um diadema central que contorna toda a coroa. Neste busto não há uma única inscrição que seja. Nenhum hieróglifo, nenhum desenho, nada. Só a coroa real com a serpente, mostrando que ali não era uma pessoa qualquer.

Algumas partes da escultura que faltam foram procuradas e descobertas pelo ateliê de Thutmose, mas outras não, como pedaços da orelha esquerda e o olho esquerdo. Borchardt escreveu mais tarde que esse olho nunca havia sido colocado em seu lugar; assim, o busto nunca foi concluído. Não se tem ideia do motivo da peça ter sido abandonada assim, sem mais nem menos. Parece que não terminaram para poderem fugir de alguma coisa. O que, ninguém sabe.

Pela forma como o busto foi encontrado, acredita-se que ele foi posto em uma prateleira de madeira e caiu por causa de um colapso, mas permaneceu quase intacto e depois foi preservado pelos escombros que o cobriram nesses longos milênios; mas Ludwig Borchardt não foi capaz de continuar com os trabalhos no local após uma coisinha chata chamada Primeira Guerra Mundial.

Então, começa outra aventura: levar o busto para a Alemanha.

Tecnicamente, Borchardt não deveria ter tirado o Busto de Nefertiti do Egito. Naquela época, havia um protocolo que estabelecia que as descobertas arqueológicas do Antigo Egito eram divididas entre o governo egípcio e os descobridores dos artefatos, mas este protocolo também determinava que quaisquer descobertas envolvendo reis ou rainhas deveriam permanecer no Egito. Sim, só reis ou rainhas, e foi aí que Borchardt fez das suas.

O então chefe do Serviço de Antiguidades Egípcias era Gaston Camille Charles Maspero. Maspero era um egiptólogo de mão cheia, considerado o mais eminente egiptólogo da França na época. Em novembro de 1880, Maspero foi para o Egito como chefe de uma missão arqueológica, e assim como Borchardt, foi ficando, foi ficando, foi ficando até assumir o Institut Français d’Archéologie Orientale. Maspero não era tão bom arqueólogo quanto linguista, e supervisionou vários sítios e as inscrições encontradas em Saqqara, Luxor, Karnak, Lisht e… Amarna. Ao saber da descoberta de Borchardt, Maspero enviou o também arqueólogo Gustave Lefebvre como inspetor do Egito Médio para o Serviço de Antiguidades Egípcias, que era chefiado pelo próprio Maspero.

Pausa. Vocês viram alguma menção a qualquer arqueólogo, especialista, linguista, cientista e membro governo egípcio? Não, né? No máximo, alguns deles com sorte estavam recebendo propina, mas a rigor o governo egípcio estava vendo todo seu acervo ser dilapidado por todo mundo e não podia fazer nada. Continuando.

Lefebvre chegou no sítio de Amarna para administrar parte das escavações de Ludwig Borchardt, em 20 de janeiro de 1913. Borchardt e Lefebvre chegaram a um acordo como os artefatos encontrados no ano anterior seriam divididos entre a Companhia Oriental Alemã (que financiou a escavação) e o Governo do Egito, na base do meio-a-meio. Não, o governo egípcio não deu pitaco nesta divisão.

O problema era, como falei, que um busto de uma rainha deveria ficar no Egito, mas aquela era uma peça que Borchardt queria levar para a Alemanha. Borchardt, como bom alemão, não queria dar moral para um francês, nem renunciar aos objetos encontrados, mas teve que se contentar na divisão de 50%, mas o Busto de Nefertiti ele não ia deixar lá, mesmo. Então, o que ele fez foi considerar a preguiça e incompetência dos outros.

Ele levou um oficial egípcio que ficou encarregado de averiguar o que estava sendo encaminhado para a Alemanha para um depósito propositalmente desorganizado. Mostrou uma fotografia do busto tirada de maneira tosca, com uma luz ruim, de forma a não mostrar os detalhes da escultura, com condições deploráveis de conservação.

Nos documentos anexados ao despacho, o objeto foi listado como um busto de gesso pintado de uma princesa; e quando Gustave Lefebvre veio para inspeção, o busto estava bem embrulhado no fundo de uma caixa. Borchardt alegou que o busto era feito de gesso (um material de qualidade muito baixa) para enganar Lefebvre, o que conseguiu lindamente. Lefebvre e sua preguiça não averiguaram se o que Borchardt tinha escrito condizia com o que estava nas caixas, e eu seria menos que humano se o fator corrupção fosse descartado por mim.

Todo o material foi levado pelo financiador das escavações, James Simon, que doou uma soma considerável em 1920 ao estado prussiano e o Busto de Nefertiti foi finalmente exposto ao público pela primeira vez em 1924, estando até hoje no Neues Museum, em Berlim, apesar de contínuos protestos de autoridades egípcias que exigem a repatriação da escultura.

Já teve muitas reviravoltas, né? Calma que tem mais, porque alguns estipulam que o Busto de Nefertiti é uma fraude.

O Busto de Nefertiti é uma fraude?

Em 2009, o jornalista e historiador Henri Stierlin publicou o livro chamado Le Buste de Nefertiti – une Imposture de l’Egyptologie? (O Busto de Nefertiti – uma Fraude da Egiptologia?) que acusa que o grande tesouro encontrado em 1912 era uma fraude feita por Ludwig Borchardt.

Stierlin não era apenas mais um maluco. Era autor de vários livros sobre o Egito e o Oriente Médio, nascido em Alexandria, Egito. Em suas pesquisas, segundo ele, ninguém do Museu de Neues quis dar maiores informações ou dar uma entrevista completa. Stierlin perguntava do que estavam com medo.

Um dos argumentos para a fraude é que seria impossível o busto estar numa prateleira a cerca de 1,60m do chão caísse de cara e não sofresse danos na parte central, já que o revestimento era de gesso, que é bem macio. Stierlin aponta que as estatuetas de Akenaton estavam quebradas e deformadas, por que a de Nefertiti estava inteira?

Alguns argumentaram que Nefertiti era mais amada que Akenaton, que era visto como um paria, mas devemos lembrar que Nefertiti participava ativamente das adorações a Aton.


Nefertiti adorando Aton

Stierlin estabeleceu ainda que o que Borchardt fez foi um experimento arqueológico. Sim, existe isso. Por exemplo, você lê uma descrição de como fazer cerveja suméria. Você segue a receita e vê se dá resultado. Experimentos arqueológicos são muito comuns, como usar técnicas de construção, ferramentas antigas, preservação de alimentos, armas etc. No caso de Borchardt, disse Stielin, ele usou uma rocha antiga e fez um busto usando as técnicas descritas, uso de gesso para o revestimento e dar textura de pele, usou os pigmentos para pintar e maquiar etc.

Só teve um probleminha: Borchardt estava no Cairo quando fica sabendo que o príncipe Johann Georg da Saxônia e sua família (por sinal, uma das ais ricas e poderosas famílias da Alemanha)  estavam de passagem pelo Egito, e Johann queria visitar as escavações arqueológicas em que Borchardt estava trabalhando.

Borchardt já tinha sido advertido a não voltar para a Alemanha sem algum achado digno de nota e aquela era uma chance, ou salvação, de mostrar que estava fazendo um bom trabalho. Com isso, Borchardt corre de volta para Amarna, chegando lá no dia 6 de dezembro de 1912, que era dia de folga dos trabalhadores. Este dia foi uma sexta-feira, e sexta-feira é o dia sagrado dos muçulmanos assim como o sábado é para os judeus. Com custo (no figurativo e monetário), Borchardt consegue que os trabalhadores voltassem ao trabalho.

Do diário de Borchardt, lê-se:

Às 12h30, batedores foram enviados para nos informar sobre a chegada do “Indiana” da linha Hamburgo-América, no qual o Príncipe Johann-Georg da Saxônia com esposa e cunhada, junto com a princesa Mathilde da Saxônia chegarão. [….] Borchardt corre para encontrá-los. Ao chegar ao navio, fica sabendo que as senhoras e os senhores já se dirigiram para o interior. Ele corre de volta. No wadi, ele recebe uma nota de Ranke, que o informa que “algo bom está vindo”. No mesmo momento, chega a companhia real. Caminhe até a escavação na Casa P.27.2

Ranke, no caso, é Hermann Ranke, um dos supervisores da escavação. A Casa P.27.2 é a referida casa de Thutmose.

Johann Georg chega e Borchardt lhe mostra tudo. Chama seu principal funcionário, mais tarde mostra com orgulho a suas Altezas os frutos de seu trabalho com excesso de zelo um dos capatazes, um egípcio chamado Mohammed es-Senussi, desaparece brevemente durante a visita e depois retorna com um busto de Nefertiti.

Johann Georg e sua família ficam encantados com a descoberta, o que deixou Borchardt numa saia justa, sem ter como explicar que era uma cópia e não algo genuíno.; De qualquer forma, ele tinha que manter as aparências, pois o tempo estava acabando e não podia voltar para a Alemanha com as mãos vazias.


Príncipe Johann Georg visitando a escavação

Mais tarde, foram tiradas as primeiras fotografias oficiais do busto, então cuidadosamente limpo. Era o dia 23 de dezembro de 1912, e as fotos foram tiradas  pelo fotógrafo Paul Hollander no local de escavação. Dadas as circunstâncias em que foram criadas, as sete fotografias em placas de vidro são de altíssima qualidade.


Foto oficial da descoberta, com o busto devidamente limpo

Stierlin ainda aponta para um detalhe interessante: a descoberta foi em 1912, mas só em 1924 o busto foi para o Museu Neues.  Onde estava este busto? Bem, fotos do escritório de Borchardt mostram que o Busto de Nefertiti estava lá, decorando um móvel. Não era para ter ido imediatamente para o museu?


Escritório de Borchardt

Os críticos de Stierlin disseram que não tinha como Borchardt falsificar e que essa história de arqueologia experimental era balela; ainda assim, mandaram o busto para ser analisado quimicamente e por tomografia computadorizada. O que descobriram é que sim, a rocha era autêntica e tanto ela quanto os pigmentos eram realmente da idade em que o escultor Thutmose viveu.

Stierlin contra-atacou com os próprios relatórios de Borchardt que descreviam como ele encontrara pigmentos e gesso no local que datavam do reinado de Akenaton; então, sim, podiam ter feito uma réplica com os materiais lá encontrados, pois rochas e gesso da época de Akenaton e Nefertiti ainda estavam lá, prontinhos para serem usados. Era só uma questão de ter um escultor habilidoso e isso é o que não falta no Egito, com um monte de gente usando rochas antigas e escombros de templos para falsificar estátuas, bustos etc.

Qual é o fato? Qual é a mentira? Qual é a verdade? Qual é a fraude? Não sabemos. simplesmente isso. É um mistério que aparentemente não terá solução tão cedo, um mistério que Henri Stierlin não teve a chance de elucidar definitivamente, já que ele faleceu em 10 de setembro de 2022.

O último mistério

Como falei muito mais acima, Nefertiti sumiu, escafedeu-se. Com a morte (misteriosa, diga-se de passagem) de Akenaton, outro rei assumiu pouco depois. Este rei seria filho de Amenhotep III, pai de Amenhotep IV que viria ser Akenaton. Em outras palavras este rei seria irmão de Akenaton e cunhado de Nefertiti. Seu nome era Ankhkheperure Smenkhkare Djeser Kheperu ou simplesmente Smenkhare, que significa “Vigorosa é a Alma de Re”, e o que se sabe sobre ele é… nebuloso.

Primeiro de tudo, parece que ele cai de paraquedas na história. Smenkhare é conhecido por ter se casado com a filha mais velha de Akenaton, Meritaten. E aqui fica também confuso, porque alguns autores apontam que Smenkhare era pai de Tutankâmon, outros que era apenas tio, porque Tut era filho mesmo de Akenaton. Há quem aponte coisas estranhas nas representações de Smenkhare, como se ele tivesse feições femininas e muitos concluem que Smenkhare era apenas Nefertiti que tinha se vestido de homem para poder reinar o que nem seria novidade, já que a rainha Hatshepsut tinha feito exatamente isso.

Rainhas podiam governar, mas como regente simplesmente, enquanto o filho não atingira maioridade. No caso de Hatshepsut, ela gostou tanto de reinar que ela mesmo assumiu como rei, mandando fazer barbas postiças e se apresentando como homem. Isso desagradou a todos quando foi descoberto e muitos murais que a retratavam foram destruídos para apagar esta vergonha (para eles) da história.

E Smenkhare? O que aconteceu com ele? Bem, se sabe pouco porque ele reinou pouco, apenas um ano. Em seguida, apareceu um dos mais famosos achados arqueológicos da História: Tutankhaten, mas muito provavelmente você conhece pelo nome Tutankâmon (Imagem Viva de Áton), o Faraó Menino.

O que esta história nos ensinou?

A História nos ensina, mesmo quando não há informações detalhadas. Nos ensina a examinar tudo minuciosamente, investigar, levantar dados e ter um olhar criterioso, cético, sobre todas as coisas; porque ceticismo não tem a ver com religião e sim de simplesmente investigar e não aceitar coisas que nos são mostradas. É ter dúvidas e expor estas dúvidas para que elas sejam eliminadas.

Quem realmente foi Akenaton? Quem foi Nefertiti? O modo de vida dos egípcios nos dá algumas informações, mas mais informações são aquelas silenciadas: como o poder da religião ainda era imensa ao ponto de confrontar reis e modelar futuros governantes. Esta é uma importante informação da civilização egípcia, misteriosa, antiga, bela, violenta por vezes, enigmática, esplendorosa e fascinante. Sim, haviam os Hititas, os Babilônios, os Assírios, mas olhem o Egito, seus templos, seus palácios e, claro, suas pirâmides. Como competir?

O Egito ainda guarda muitos mistérios, muitos segredos, e uma coisa é certa. Eu morrerei, meus escritos certamente não estarão por aqui daqui a 100 anos, mas o Império à beira do Nilo estará lá, imperscrutável, emblemático, místico, fabuloso, eterno.


Fontes: