Jean-Henri Latude: o gênio da fuga que era péssimo em ficar livre

Há pessoas que entram para a história pela glória, outras pelo talento, e umas poucas pela pura teimosia. Jean-Henri Latude, o sujeito mestre em escapadas, Senhor do Engodo, praticamente o Loki francês. Um cara que resolveu colecionar fugas de prisão como quem coleciona Funko Pop, mas péssimo em consumar seus planos e se autossabotar. Durante 35 anos, este homem entrou e saiu da Bastilha com uma frequência que faria inveja aos funcionários do prédio, protagonizando uma das histórias mais absurdas do Antigo Regime francês.

Pense num sujeito que conseguiria usar todos os estratagemas de fugir da prisão, mas pecava por ser quem ele era e voltava a ser preso por excesso de ingenuidade; para logo depois sair livre por excesso de audácia, mas só para ser preso de novo por excesso de… Bem, este é M. Latude. E esta é sua história, que poderia virar série da Netflix, com um daqueles pôsteres sombrios de série de época com cara de “baseado em fatos que ninguém te ensinou porque iam achar que você não ia acreditar”.

Jean-Henri Masers de Latude foi uma figura… interessante. Alguém com quem eu tomaria uma cerveja num bar ouvindo suas histórias. Obviamente, eu não daria muito crédito a todas elas, mas quem não gosta de uma história bem contada?

Já começamos pelo fato que, ao sabor das circunstâncias e da própria conveniência, João Henrique (vou alternar aleatoriamente entre Jean-Henri e João Henrique… porque sim) assinava ora Danry, ora Dangry, ora ainda o altissonante e inventado Masers de Latude. O sujeito nasceu envolto em névoa de incertezas; seu pai era um ponto de interrogação na certidão; a mãe, ora descrita como burguesa modesta, ora como simples criada, deixava entrever a fragilidade de sua posição.

Corria, porém, um rumor persistente nos salões e nas vielas: dizia-se que o verdadeiro pai de João Henrique seria o senhor Visses de Latude, e que o menino carregava no sangue o estigma silencioso de filho natural, ou, nas palavras mais cruas da época, bastardo. Não se sabe até que ponto isso é verdade. O máximo que se sabe pé que ele nasceu em 23 de março de 1725, em Montagnac, ou seja, uma comuna no departamento de Hérault, na região da Occitânia, no sul da França. Um vilarejo, praticamente.

O pseudônimo Masers de Latude era pura ficção aristocrática: “Masers” não correspondia a nenhum lugar, feudo ou linhagem real; tratava-se apenas de um som pomposo que soava nobre aos ouvidos menos atentos. Ao mantê-lo junto ao sobrenome Latude, ele insinuava uma ligação legítima com a família que, na verdade, talvez o tivesse apenas gerado à margem da lei e dos costumes. A rigor, era uma espécie de “cosplay de nobre” do século XVIII. Ele usava esse e outros (Danry, Dangry, Danri, etc.) em cartas, petições e até em documentos oficiais quando queria impressionar ou enganar alguém. Quase nunca deu certo.

Ainda jovem, João Henrique trocou a obscuridade da província pelo cheiro de pólvora e iodo dos exércitos do rei. Serviu primeiro como cirurgião militar, aprendendo a arte de cortar e costurar carne humana sob o fragor dos canhões, já que em campo de batalha, qualquer um que suturasse mesmo que de forma tosca, era “dotô”, se me compreendem. Na Guerra da Sucessão Austríaca, exerceu o ofício de assistente de cirurgião, vendo de perto a morte em escala que poucos suportam sem deixar algo de si nos campos ensanguentados.

Findo o conflito, regressou a Paris não para repousar, mas para se perder. A disciplina militar dissolveu-se rapidamente entre os cafés, os teatros e os quartos alugados da capital. Levava então uma existência desenvolta e inquieta, onde o dinheiro fácil, as companhias perigosas e os planos temerários – muitas vezes assinados com aquele nome de fantasia, Masers de Latude – substituíam o bisturi e as ataduras, prenúncio da fama ambígua que, anos depois, o tornaria uma das figuras mais singulares e controversas do século XVIII francês.

Alguns cronistas dizem que Jean-Henri foi educado pelo pai e colocado no corpo de engenharia militar, isto é, um jovem brilhante com acesso a ferramentas, explosivos, esquadros e um senso de oportunidade do tamanho do ego do século XVIII.

Jean-Henri deve ter se metido em muitos problemas, mas isso não se tem detalhes. O que se sabe é que ele achou que seria ótimo ter costas quentes com a realeza; como chegar junto ao rei (no caso Luis XV).

Latude decidiu conquistar a proteção de Madame Jeanne-Antoinette Poisson, cujo nome você certamente não deve saber quem é, mas vou facilitar: ela era chamada de Madame de Pompadour, e ela a segunda pessoa mais poderosa da França. Por quê, perguntará você. Simples, responderei eu; vamos, conte-me, dirá você; me sentirei feliz em informar, falarei eu. Joana Antônia, apesar de casada com um nobre, era amante de Luis XV, o Bem-Amado (Le Bien-Aimé),alcunha que começou como elogio e acabou virando piada.


Madame de Pompadour
(ou todo mundo tinha essa cara feia
ou os pintores eram péssimos)

Para vocês terem uma ideia, Jeanne-Antoinette era até mais poderosa que a própria rainha Maria Leszczyńska (filha do ex-rei da Polônia Estanislau I Leszczyński). Madame de Pompadour não era apenas amante, era a Favorita do Rei (a rainha sabia, mas teve que calar a boca), uma ministra sem pasta. Ela indicava e derrubava ministros, controlava nomeações de bispos, generais e embaixadores, criou a manufatura de porcelana de Sèvres (ainda hoje famosa), foi protetora de Voltaire, Diderot, a Enciclopédia, Boucher e Fragonard, e mandou construir ou reformar o Château de Bellevue, Menars e o Hôtel d’Évreux (hoje Palácio do Eliseu). Jeanne-Antoinette era chamada à boca pequena de “Reinette” (“rainhazinha”), chegando ao ponto de distrair o rei em jantares e ela mesma selecionando, instruindo e supervisionando jovens moças para… cof cof… servirem ao Rei; mas isso para garantir que ele não arrumasse nenhuma outra amante tão ambiciosa e sagaz como ela, e ninguém ameaçasse a sua posição política.

Foi a essa mulher inteligente e implacável que Latude teve a brilhante ideia de trazer para seu lado. Ele até teria logrado êxito (duvido) se não fosse… bem, se ele não fosse um idiota. Enquanto todos os outros idiotas faziam uso de enviar flores e exacerbar na bajulação, Latude foi por outro caminho: preferiu uma espécie de ataque terrorista simulado.

O plano era digno de um episódio de Scooby-Doo: enviaria à marquesa uma carta anônima alertando sobre um complô contra sua vida e, em seguida, mandaria uma caixa bomba falsa para “provar” a ameaça. A caixa continha frascos de vidro que explodiam com um “explosivo fraquíssimo” que, nas palavras do documento histórico, “não representavam perigo algum”. Funciona em romance ruim, mas na vida real geralmente só produz uma coisa: cadeia.

Para contextualizar: estamos na França de meados do século XVIII, uma época em que a Bastilha não era apenas uma prisão, mas um símbolo do poder absolutista. O rei podia mandar prender qualquer um mediante uma lettre de cachet, uma ordem selada que não precisava de julgamento, processo ou mesmo uma razão particularmente boa. Era o equivalente setecentista do “porque eu disse” materno, só que com masmorras. O problema neste estratagema é que Madame de Pompadour não tinha senso de humor para com plebeus e tinha pouca paciência com explosivos, mesmo os “fraquíssimos”.

Quando a marquesa abriu o embrulho e levou aquele susto (quase teve um treco, nas palavras exatas), Latude foi considerado não um visionário, mas um potencial assassino meio patético. Por mais que jurasse ter feito tudo como “estratagema” para obter proteção dela. Ela riu, ele riu, ambos riram, ele foi parar direto na Bastilha em 1749. Nada como começar sua carreira pública com um crime que você mesmo inventou para se promover. Começava ali uma relação de décadas entre Latude e as prisões francesas, um romance tóxico se jamais houve um.

Dois anos depois, em 1751, Jean-Henri consegue sua primeira fuga numa cena que parece saída de um episódio dos Trapalhões, e aqui precisamos reconhecer: o homem tinha talento. Latude simplesmente vagueia pelos corredores (sim, nesse tempo tod ele se comportou tão bem, que deixavam a cela dele aberta) e, com a maior naturalidade do mundo, pergunta às sentinelas se não tinham visto passar “o abade de São Salvador”, pois havia um preso moribundo precisando de confissão. A naturalidade é tão poderosa que vira arma. As sentinelas, diante dela, não desconfiam de nada e deixam o “abade” passar.

Dramática reconstituição do poder de persuasão dele.

Mas aí vem a parte que define toda a saga: livre, andando por aí como um homem normal, o que faz Latude? Ao invés de picar a mula e nunca mais ser visto, o sujeito vai e escreve de novo para Madame de Pompadour contando como fugiu e pedindo perdão. Quase dá para ouvir a marquesa dizendo “Ô meu filho…”. É como se alguém fugisse da Coreia do Norte e mandasse um e-mail para Kim Jong-un com o assunto “Oi, tô na Tailândia agora, sem ressentimentos?”. A marquesa ergue a sobrancelha (se ela não fez isso, vou dizer que fez. Azar, sou eu quem está contando a história) e fez o que qualquer um (exceto Latude) saberia que ela faria. O intendente de polícia agarrou o rapaz de volta e o enfiou novamente na Bastilha. Ingênuo nível: expert.

O governador, com pena dele (e talvez achando graça), arranjou-lhe um companheiro de cela. Juntos, os dois planejaram nova evasão, dessa vez com método: obtiveram instrumentos secretamente, serraram as grades da chaminé numa noite bem escura, fabricaram uma escada de cordas e desceram ao jardim. Diante de um muro enorme que não conseguiam transpor, Latude, qual MacGyver iluminista, que havia construído às ocultas “um verdadeiro arsenal”, usou uma alavanca artesanal para abrir uma brecha no muro. Sim, ele levava ferramentas escondidas. Sim, era um preso que fabricava seu próprio arsenal. E sim, eles conseguiram fugir. Temporariamente. O companheiro foi recapturado em Bruxelas; Latude, em Amsterdã. O que prova que o destino também tem senso de humor. De volta à Bastilha, round três.

Nessa época, a França já fervilhava com ideias iluministas. Voltaire, Rousseau, Diderot e companhia publicavam textos questionando o Absolutismo, a arbitrariedade das prisões e os abusos da monarquia. A Enciclopédia circulava (ainda que censurada), e a opinião pública começava a se formar como força política. Nesse contexto, casos como o de Latude, preso há anos por um crime ridículo sem julgamento adequado, tornavam-se munição perfeita para os críticos do regime. Mas o próprio Latude parecia alheio a esse papel histórico que estava construindo involuntariamente.

Na Bastilha novamente, Latude domesticou ratos para passar o tempo, suponho que tanto por tédio quanto por uma necessidade de sentir que pelo menos alguém ali gostava dele. O capelão se comoveu, conseguiu-lhe cárcere menos infecto, papel e penas para escrever suas memórias. Note que memórias escritas na prisão do século XVIII tinham tudo para ser um misto de denúncia política, delírio claustrofóbico e um leve toque de manifesto épico. E de fato foram. Passeando pelo terraço, vantagem que conquistara, João Henrique conversou com algumas pobres lavadeiras que ali iam e que lhe contaram, em 1764, que Madame de Pompadour havia morrido.

Latude, feliz com a notícia e na sua infinita sabedoria, deixou escapar ao governador que tal informação lhe chegara aos ouvidos, mas recusou-se a delatar as mulheres que lhe contaram a novidade. Prisão é como novela: informação é poder. Ele perdeu todas as regalias e voltou para a cela. Mais uma vez, tinha talento para serrar grades, mas não para entender o básico do básico da sobrevivência social: não chame atenção para o que não deve.

Transferiram-no para Vincennes, onde podia passear pelo jardim. Disso se aproveitou para fugir, mais uma vez. Refugiou-se em casa de uma das lavadeiras, mas acabou recapturado porque, pasmem, pediu uma audiência com o intendente de polícia. Repito: ele pediu para ser recapturado sem perceber. Parecia incrível que uma criatura tão hábil para fugir fosse tão ingênua depois que conseguia a liberdade. Latude era uma mistura rara de genialidade para escapar e incompetência para viver solto.

De novo foi em cana, e bem vigiado, nos cárceres de Vincennes. Durante dez anos ali ficou, esquecido como uma aba aberta no navegador. Até que Malesherbes, esse sim um homem iluminado e humanista, fez uma visita às prisões, interessou-se pela figura peculiar e desejou libertá-lo. Mas o intendente de polícia declarou que Latude era “um louco da pior espécie”, o que não ajudou muito. E eis que a sorte do infeliz piora: enviam-no para o hospício de alienados em Charenton. A vida dele era um tour completo pelas instituições francesas mais temidas.

Em 1777, le roi Luís XVI (sim, o filho do Quinzinho) assinou a ordem de soltura, mas logo depois Latude foi novamente preso. Com os ventos revolucionários que sopravam, não convinha que os inimigos do regime soubessem de todas as iniquidades sofridas pelo pobre Latude. Vinte e nove anos de prisão apenas por ter mistificado a Favorita do Rei! Afinal, esse caso não pegava bem na vitrine política daquele momento. Dessa vez foi o presidente de Gourgues que visitou a prisão, viu o sujeito e pediu que escrevesse um memorial contando seus infortúnios.

Latude, sempre aplicado, escreveu-o e enviou-o por um carcereiro. Este, seguindo a tradição francesa de complicar ainda mais as coisas, embriagou-se e perdeu o memorial no meio da rua. Uma lojista passa e recolhe o papel. É a senhora Legros que, impressionada com o que ali se relata, emprega todos os meios para salvar aquele pobre desconhecido. Essa mulher moveu montanhas. Lançou-se aos pés do rei, da rainha, perseguiu ministros, implorou, reclamou, solicitou, agitou a opinião pública. Pela sua perseverança tão nobre, a Academia Francesa deu-lhe um prêmio de virtude, o que, considerada a época, representava um ato de coragem da Academia. Quando até a Academia resolve bancar o personagem secundário heroico, você sabe que a história é boa.

Quando a ordem de soltura finalmente veio, Jean-Henri Latude saiu do cárcere, mas a liberdade foi devolvida a um velho que, tendo entrado para a prisão aos vinte e três anos, dela saía aos sessenta. A liberdade devolveu a ele o que restava: um corpo cansado, uma mente calejada, um futuro pequeno. Para indenizá-lo do patrimônio que perdera, o Rei mandou que lhe dessem uma pensão de quatrocentas libras, com a condição de que partisse para Montagnac. Latude, porque até para aceitar dinheiro o homem era rebelde, quis viver em Paris e conseguiu revogação da ordem.

Sim, eu sei que você tá fazendo facepalm agora, entre tantos outros que fez durante a leitura, nem que fosse mentalmente.

Seu nome foi invocado pelos demolidores da Bastilha em 1789 como símbolo das atrocidades do regime. Sua história formava um dos mais terríveis libelos para auxiliar a derrocada de um regime que devia (e ia) cair logo depois. Tornou-se um ícone involuntário da resistência, uma espécie de Forrest Gump trágico do cárcere francês, atravessando décadas de estupidez institucional e sobrevivendo por pura insistência.

Jean-Henri Masers de Latude morreu em 1805, quando a França já tinha sido virada do avesso por guilhotinas, revoluções e imperadores empreendedores. Morreu velho, famoso e com a glória tardia que talvez sempre quis, mas nunca do jeito que sonhou. Tendo vivido para ver a Revolução que sua história ajudou a alimentar, provou duas coisas. A primeira: o despotismo enfraquece quando alguém tem coragem (ou teimosia) suficiente para narrar seus horrores. A segunda: às vezes, as lendas não nascem dos grandes feitos, mas das burrice épicas que fazemos ao tentar dar certo. Foi um dos maiores mestres da fuga da história francesa e, simultaneamente, um dos maiores fracassados em ficar livre. No fim, o pior inimigo estava dentro dele, geralmente na parte do cérebro que acha boa ideia mandar carta para quem te prendeu contando como você fugiu.

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