Quando Júpiter cuspiu asteroides no Sistema Solar Interior

Imagine que você é um vizinho pacato em um bairro residencial quando, de repente, o sujeito da casa ao lado decide reformar o quintal e, no processo, acidentalmente joga pedras no seu telhado por anos e mais anos a fio e você sequer tem como reclamar pois o vizinho é bem maior que você. Agora multiplique essas pedras pelo tamanho de montanhas, adicione velocidades absurdas, e troque o vizinho chato por Júpiter, o planetão gigantão que, há 4 bilhões de anos, decidiu que seria uma excelente ideia fazer uma pequena reorganização no Sistema Solar.

O resultado? Um dos eventos mais espetaculares e controversos da história cósmica: o Grande Bombardeio Tardio, ou como poderíamos resumir numa única frase: “A vez em que Júpiter quase destruiu tudo, mas acabou salvando a vida na Terra por puro acaso”.

Mas você não quer uma única frase, não é mesmo?

Para entender essa história, precisamos voltar no tempo até uma época em que nosso Sistema Solar tinha mais cara de canteiro de obras do que cidades em época de reeleição de prefeito. Estamos falando de 4,6 bilhões de anos atrás, quando tudo não passava de um disco gigantesco de poeira e gás orbitando uma estrela recém-nascida; a saber, o nosso Sol ainda adolescente, cheio de energia e instabilidade hormonal cósmica.

O processo que transformou essa bagunça primordial nos planetas que conhecemos é uma história fascinante de acreção gravitacional. Imagine bilhões de partículas de poeira cósmica fazendo o equivalente astronômico de uma briga de bar: quanto maior você fica, mais fácil é atrair outros para o seu lado, até que de repente, não mais que de repente, você se torna o valentão do pedaço. Em apenas 100 milhões de anos – um piscar de olhos em termos cósmicos –, esse processo havia criado os quatro planetas terrestres: Mercúrio, Vênus, Terra e Marte.

Foi durante esse período caótico que nossa Lua nasceu, produto de uma colisão mais violenta que a porrada que eu irei tomar da esposa caso eu diga que ela ganhou uns quilinhos. Um objeto do tamanho de Marte, carinhosamente apelidado pelos cientistas de Theia (em homenagem à titã grega, mãe de Selene, a deusa da Lua), colidiu com a Terra primitiva com uma força que derreteu ambos os corpos celestes. O resultado foi uma Terra reformulada e uma bola de magma que se tornou nossa companheira lunar.

Mas aqui é onde a história fica interessante (e por “interessante”, quero dizer “potencialmente apocalíptica”). Quando os astronautas da Apollo voltaram da Lua carregados de pedras lunares como turistas entusiasmados, eles trouxeram consigo uma descoberta que deixaria os geólogos coçando a cabeça por décadas. Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins (o cara que ficou orbitando sozinho enquanto os colegas se divertiam na superfície) não faziam ideia de que estavam carregando evidências de um dos eventos mais dramáticos da história do Sistema Solar.

As rochas lunares contavam uma história surpreendente: quase todas as amostras de diferentes regiões e crateras da Lua datavam do mesmo período relativamente curto: entre 4,1 e 3,8 bilhões de anos atrás. Era como se alguém tivesse cronometrado um bombardeio cósmico com a precisão de um relógio suíço. Essas rochas eram “impact melt” – material que havia sido derretido pelo calor extremo dos impactos de meteoritos e depois resfriado novamente, como vidro vulcânico, mas feito por asteroides furiosos.

Gene Shoemaker, o geólogo americano que literalmente escreveu o livro sobre crateras de impacto (e que foi a primeira pessoa a ter suas cinzas enviadas à Lua após sua morte em 1997), foi um dos primeiros a perceber a implicação dessas datações. Junto com outros pesquisadores como Fouad Tera e Dimitri Papanastassiou, eles cunharam o termo “Late Heavy Bombardment” nos anos 1970, criando uma das teorias mais debatidas da astronomia moderna.

A ideia era simultaneamente elegante e aterrorizante: durante um período relativamente curto da História do Sistema Solar, nossa região cósmica havia se tornado uma zona de guerra, com asteroides chovendo do Espaço como granizo apocalíptico. Mas ao contrário do bombardeio gradual que você esperaria dos restos da formação planetária – uma diminuição constante de detritos ao longo do tempo –, isso parecia ter sido um evento concentrado, um surto de destruição cósmica.

Mas espere, você deve estar pensando, se a Lua foi tão massacrada, como diabos a Terra escapou do mesmo destino? A resposta curta é: não escapou. A Terra foi igualmente bombardeada, possivelmente até mais do que a Lua, considerando sua maior gravidade. A diferença é que nosso planeta é um mestre em destruir evidências. Enquanto a Lua preserva suas cicatrizes como um veterano de guerra orgulhoso de suas medalhas, a Terra é mais como uma celebridade que fez tantas cirurgias plásticas que ninguém reconhece mais suas fotos antigas.

O responsável por essa renovação constante da face terrestre é a tectônica de placas, um processo que na época do Grande Bombardeio Tardio estava funcionando em overdrive. A crosta terrestre estava fraturada em pequenas placas que se moviam e reciclavam muito mais rapidamente do que hoje, como um tapete rolante cósmico que apagava constantemente as evidências do massacre celeste. Adicione a isso 4 bilhões de anos de erosão, vulcanismo, sedimentação e outras renovações geológicas, e você tem uma receita perfeita para fazer desaparecer crateras do tamanho de países.

O único vestígio visível dessa era de bombardeio que ainda podemos ver hoje é a Cratera Barringer, no Arizona, mas essa é praticamente um bebê em termos geológicos, com apenas 50.000 anos de idade – formada muito depois que o drama principal já havia terminado. É como comparar um arranhão recente com cicatrizes de uma guerra antiga.

Mas voltemos ao verdadeiro vilão (ou herói, dependendo da perspectiva) da nossa história: Júpiter. Este gigante gasoso, com mais de 2,5 vezes a massa de todos os outros planetas do Sistema Solar combinados, não é apenas o maior planeta do nosso sistema, é também o mais influente! E há 4 bilhões de anos, Júpiter decidiu fazer uma pequena viagem que mudaria tudo.

A teoria atual, conhecida como “Grand Tack Model” (modelo do grande zigue-zague), sugere que Júpiter nem sempre orbitou a confortáveis 768 milhões de quilômetros do Sol. Quando o gigante gasoso se formou, ainda havia quantidades enormes de gás orbitando o Sol jovem, restos do disco protoplanetário original. Esse gás criou um efeito de arrasto gravitacional que puxou Júpiter para dentro, em direção ao Sol, como um carro sendo rebocado por uma corrente invisível.

Júpiter migrou para dentro até aproximadamente onde Marte orbita hoje (lembrando que Marte ainda não existia nessa época), numa jornada que durou centenas de milhares a alguns milhões de anos. Mas então algo extraordinário aconteceu: Saturno entrou em cena.

Quando Saturno finalmente se formou e foi capturado pelo mesmo processo de migração, os dois gigantes gasosos entraram numa dança gravitacional complexa. Suas órbitas se sincronizaram numa ressonância 2:1, ou seja, para cada duas órbitas de Júpiter, Saturno completava uma. Essa configuração criou um efeito gravitacional combinado poderoso o suficiente para inverter a migração de Júpiter, puxando-o de volta para a região externa do Sistema Solar onde o encontramos hoje.

Kevin Walsh, Alessandro Morbidelli e outros pesquisadores do Laboratório de Astronomia de Côte d’Azur, na França, junto com colegas americanos, desenvolveram essa teoria nos anos 2000, usando as mais avançadas simulações computacionais que se tinha. Seus modelos mostraram que essa migração de Júpiter explicaria não apenas a configuração atual do Sistema Solar, mas também muitas de suas peculiaridades, como por que Marte é tão pequeno comparado à Terra e Vênus.

Mas o mais importante para nossa história é o que aconteceu durante essa jornada jupiteriana. Conforme Júpiter se movia para dentro e depois para fora do Sistema Solar, sua gravidade massiva perturbou violentamente as órbitas de milhões de asteroides. O cinturão de asteroides que vemos hoje, com seus mais de um milhão de objetos orbitando entre Marte e Júpiter, representa menos de 1% da população original. O resto foi espalhado pelo Sistema Solar como sementes de destruição cósmica.

Essa redistribuição de asteroides criou duas populações distintas de projéteis espaciais. Os asteroides de tipo S (silicatos), rochosos e metálicos, vinham das regiões internas e eram relativamente secos, forjados no calor próximo ao Sol jovem. Os asteroides de tipo C (carbonáceos), por outro lado, vinham das regiões externas do Sistema Solar e carregavam algo precioso: água. Quantidades enormes de água congelada.

Quando essas duas populações de asteroides começaram a chover sobre os planetas internos, elas trouxeram consigo uma mistura letal e, paradoxalmente, vital de destruição e criação. A Terra, nessa época, estava passando por sua própria adolescência cósmica conturbada. Sua superfície havia resfriado o suficiente para formar uma crosta sólida – a litosfera primitiva –, mas ainda era um mundo alienígena que faria os cenários mais sombrios de ficção científica parecerem cartões postais.

Imagine um planeta coberto por oceanos de lava, com uma atmosfera tóxica de metano e amônia, pontilhado por vulcões ativos que vomitavam rocha derretida através de fissuras constantemente abertas pelos impactos de asteroides. O céu estava permanentemente escuro devido às nuvens de poeira e vapor, ocasionalmente iluminado pelo brilho laranja-avermelhado de lava incandescente.

Quando os asteroides atingiam a superfície, eles criavam explosões que liberavam mais energia do que todas as armas nucleares já construídas pela humanidade juntas. Se o Inferno alguma vez existiu, este era a Terra Primitiva!

Mas aqui reside uma das ironias mais belas da Ciência: essa aparente catástrofe pode ter sido exatamente o que tornou a vida possível na Terra. Os asteroides não trouxeram apenas destruição; eles trouxeram presentes. Elementos pesados como ouro, prata, cobre, níquel e platina, que hoje encontramos na crosta terrestre, muito provavelmente chegaram aqui durante esse bombardeio. A distribuição desses metais preciosos na crosta terrestre é consistente com sua chegada através de impactos de asteroides, não com processos geológicos internos.

Mais importante ainda, os asteroides trouxeram água. Oceanos inteiros de água. Se essa água tivesse chegado mais cedo, quando a Terra ainda estava muito quente, ela teria evaporado e escapado para o Espaço, deixando nosso planeta seco como Marte. Se tivesse chegado muito tarde, poderia não ter havido tempo suficiente para os processos químicos complexos que eventualmente levariam à vida. O timing foi perfeito!

A evidência de que a vida realmente começou logo após o fim do Grande Bombardeio Tardio é tentadoramente sugestiva. Os fósseis mais antigos que conhecemos, estromatólitos formados por cianobactérias, datam de cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, coincidindo com o final do período de bombardeio intenso. É como se a vida tivesse esperado educadamente que a chuva de asteroides terminasse antes de fazer sua grande estreia cósmica.

Mas aqui chegamos a um ponto crucial da nossa história: nem todo mundo concorda que o Grande Bombardeio Tardio aconteceu como descrito. A ciência, ao contrário da política, prospera no ceticismo e no debate constante. Críticos da teoria, incluindo pesquisadores como Barbara Cohen, da NASA, argumentam que os dados das amostras lunares podem ser interpretados de maneira diferente.

O problema principal é que temos apenas 382 kg de rochas lunares para trabalhar, todas coletadas de algumas poucas localizações cuidadosamente selecionadas durante as missões Apollo. É como tentar entender toda a história da humanidade baseando-se apenas em artefatos encontrados em meia dúzia de cidades. Técnicas analíticas mais refinadas desenvolvidas nas últimas décadas revelaram inconsistências nas datações que sugerem que as crateras lunares podem ter se formado ao longo de um período muito mais longo, como um bombardeio gradual diminuindo ao longo do tempo, em vez de um surto concentrado.

Alguns pesquisadores propuseram modelos alternativos onde o que interpretamos como evidência de um bombardeio tardio é na verdade o resultado de processos de formação planetária mais convencionais, apenas mal interpretados devido ao viés de amostragem das missões Apollo; e é aqui que entra a importância das futuras missões lunares. O programa Artemis da NASA, que pretende levar astronautas de volta à Lua já em 2026, promete fornecer amostras de regiões lunares nunca exploradas. Será como finalmente ter acesso a outros capítulos do livro de história cósmica que temos lido apenas parcialmente.

A verdade é que, independentemente de os detalhes específicos do Grande Bombardeio Tardio estarem corretos ou não, a história geral permanece fascinante e plausível. Júpiter, com sua massa gigantesca e influência gravitacional dominante, certamente teve um papel crucial na formação do Sistema Solar que conhecemos. Sua migração para dentro e para fora pode não ter criado um bombardeio concentrado de asteroides, mas certamente redistribuiu material pelo Sistema Solar de maneiras que ainda estamos tentando entender completamente.

A história do Grande Bombardeio Tardio nos ensina algo profundo sobre nosso lugar no universo: somos tanto produtos de uma violência cósmica extrema quanto de coincidências extraordinariamente felizes. Nossa existência depende de um equilíbrio delicado entre destruição e criação, caos e ordem, timing cósmico e pura sorte.

Talvez, você ache que isso foi alguma obra divina para que aqui, apenas aqui, tão-somente aqui, inexoravelmente aqui, tenha surgido vida e, bilhões de anos depois, alguém caminhe pelo vale mais calmo e confortável de se pensar: o mundo é lindinho, o Universo é fofo e tudo isso conspira para que em bilhões de galáxias, contendo bilhões de estrelas cada uma, a entidade mágica tenha escolhido um caminho complicado de fazer surgir vida porque precisava de alguém para bajulá-la.

Talvez seja efeito de um deus, sim. Um deus planeta! Por isso, a próxima vez que você vir um ponto de luz brilhando no céu noturno, lembre-se de que você está olhando para o arquiteto acidental do Sistema Solar, o responsável involuntário pela chuva cósmica que pode ter tornado a vida possível. No caso, o Deus Planeta Júpiter.

É uma responsabilidade e tanto para um planeta que é basicamente uma bola gigante de gás, mas assim são as ironias do cosmos: às vezes os atos mais importantes são completamente acidentais, e às vezes a destruição e a criação são apenas duas faces da mesma moeda cósmica.

Mas você tem o direito de acreditar num mito de criação qualquer, ignorando evidências. Não serei eu a lhe dizer que você está errado, mesmo estando.


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