O padre que viu o passado (SQN)

Em 2 de maio de 1972, uma fotografia em preto e branco estampou as páginas do semanário italiano Domenica del Corriere. A imagem, granulada e de contornos imprecisos, mostrava o rosto sereno de um homem jovem, barbado, com os olhos semicerrados em uma expressão de dor contida. A legenda afirmava algo que fez o mundo parar: tratava-se do rosto de Jesus Cristo durante a crucificação, captado por um dispositivo revolucionário capaz de ver o passado.

Esta é a história de um cientista e um aparelho incrível chamado “Chronovisor”.

O homem por trás dessa alegação extraordinária não era um charlatão de feira, mas um respeitável padre beneditino: Pellegrino Ernetti, nascido em Rocca Santo Stefano, no Lácio, em 1925. Filho de camponeses, Ernetti havia demonstrado desde jovem uma curiosa dupla vocação que o acompanharia por toda a vida: a fé cristã e a sede insaciável pelo conhecimento científico. Aos 16 anos, ingressou no mosteiro de San Giorgio Maggiore, em Veneza, onde se tornaria não apenas um monge exemplar, mas também um dos exorcistas mais renomados da Igreja Católica.

Mas Ernetti era muito mais que um caçador de demônios. Formado em Música Antiga no Conservatório Benedetto Marcello, tornou-se uma autoridade mundial em música gregoriana e polifonia renascentista. Suas transcrições de manuscritos medievais eram consideradas impecáveis pelos musicólogos mais exigentes. Paralelamente, dedicava-se à Física, campo no qual obteve reconhecimento por seus estudos sobre vibrações sonoras e acústica arquitetônica.

A história do Chronovisor, segundo Ernetti, nasceu de um acidente feliz. Em 1952, enquanto trabalhava com o padre Agostino Gemelli na gravação de cantos gregorianos antigos, um fio solto de seu equipamento começou a captar não apenas os sons do presente, mas também ecos fantasmagóricos do passado. “Ouvimos a voz do pai de Gemelli, morto anos antes, chamando pelo filho”, relataria Ernetti décadas depois, com a serenidade de quem fala sobre o clima.

Intrigado pelo fenômeno, Ernetti alegou ter desenvolvido a descoberta com ajuda de cientistas renomados. Entre os colaboradores, mencionava nomes que emprestavam credibilidade quase irrefutável: Enrico Fermi, o físico italiano que liderou a construção do primeiro reator nuclear; e Wernher von Braun, um engenheiro que teve umas passagens questionáveis em sua vida e que acabou por se tornar o arquiteto das missões Apollo.

Fermi, Prêmio Nobel de Física em 1938, era conhecido por sua capacidade única de combinar insights teóricos brilhantes com aplicações práticas revolucionárias. Sua mente metodicamente racional parecia o complemento perfeito para as inclinações místicas de Ernetti. Von Braun representava o pragmatismo implacável da engenharia aplicada.

O Chronovisor, conforme descrito por Ernetti, não era uma máquina do tempo no sentido tradicional, se é que isso existe. Não transportava pessoas através das eras, mas funcionava como uma “televisão temporal”, um dispositivo capaz de capturar e reproduzir imagens e sons de eventos históricos. O princípio técnico, segundo o padre-cientista, baseava-se na premissa de que todas as ondas sonoras e luminosas deixam rastros eletromagnéticos perpétuos no éter. O aparelho, composto por antenas especiais, monitores e um complexo sistema de decodificação, seria capaz de rastrear e reconstruir esses vestígios do éter.


Entretanto, o conceito apresentado por Ernetti ecoava, de forma quase inquietante, uma obra de ficção científica publicada apenas quatro anos antes de suas primeiras alegações públicas. Em 1956, Isaac Asimov havia publicado “The Dead Past” (O Passado Morto), um conto que apresentava o Cronoscópio (“Chronoscope”, no original) – um dispositivo notavelmente similar ao Chronovisor.

Na obra de Asimov, o Cronoscópio operava através da detecção de neutrinos, partículas subatômicas que supostamente preservavam registros temporais dos eventos passados. Como no caso de Ernetti, o dispositivo não permitia viagens no tempo, mas apenas a observação de eventos históricos. A semelhança não terminava aí: ambos os aparelhos enfrentavam limitações técnicas que impediam a visualização de eventos muito antigos, devido ao que Asimov chamou de “ruído” crescente nos dados neutrínicos.

Mas a coincidência mais perturbadora residia na questão ética central de ambas as narrativas. No conto de Asimov, o governo mantinha o Cronoscópio sob controle absoluto, não por questões técnicas, mas pelas implicações sociais devastadoras de sua popularização. Como explicou o personagem Araman: “O passado morto é apenas outro nome para o presente vivo”. Se o dispositivo pudesse observar eventos de um segundo atrás, não haveria diferença entre passado e presente, e a privacidade humana simplesmente deixaria de existir.

Ernetti, curiosamente, alegava que o Vaticano havia chegado à mesma conclusão, ordenando a destruição dos protótipos e a classificação absoluta de toda documentação relacionada ao projeto. A semelhança entre ficção e alegada realidade era demasiadamente precisa para ser mera coincidência.

As alegações de Ernetti sobre os feitos do Chronovisor apresentavam um catálogo dos momentos mais significativos da história ocidental. Ele afirmava ter observado Cícero pronunciando suas Catilinárias contra a conspiração de Lúcio Sérgio Catilina no Senado Romano, em 63 A.E.C. Descrevia com detalhes vívidos a oratória incendiária do grande cônsul, suas gesticulações teatrais e a reação tumultuosa dos senadores.

Mais ousadamente ainda, Ernetti alegava ter testemunhado eventos bíblicos fundamentais: a multiplicação dos pães e peixes, o Sermão da Montanha e, culminantemente, a crucificação. Suas descrições eram carregadas de detalhes que pareciam transcender a imaginação comum. Falava da textura do solo pedregoso do Gólgota, do cheiro acre da fumaça que subia de Jerusalém, dos sons guturais dos soldados romanos executando sua rotina macabra.

O ápice de suas revelações foi a famosa fotografia publicada em maio de 1972 no Domenica del Corriere, mostrando o rosto de Jesus crucificado. Mas essa não foi a única imagem que Ernetti alegou ter capturado. Entre suas supostas aquisições estava também uma fotografia mostrando Jesus caminhando com os apóstolos através de um campo de grãos, uma cena de serenidade pastoral que contrastava dramaticamente com o momento da morte na cruz, ambas supostamente documentadas nos laboratórios secretos do Vaticano.

Para os crentes, era a prova definitiva tanto da divindade de Cristo quanto da genialidade científica eclesiástica. Para os céticos, uma provocação inaceitável que demandava investigação imediata.

A primeira rachadura na narrativa de Ernetti apareceu quase imediatamente após a publicação das fotografias. Investigadores independentes notaram uma semelhança perturbadora entre a suposta imagem de Cristo crucificado e uma estátua do século XIX localizada no Santuário do Amor Misericordioso em Collevalenza, Itália. A escultura, obra do artista Cullot Valera, mostrava Jesus com uma expressão de sofrimento sereno que correspondia, quase ponto por ponto, à fotografia do Chronovisor.

Mais devastadora ainda foi a descoberta relacionada à segunda imagem. A fotografia de Jesus caminhando com os apóstolos através do campo de grãos revelou-se uma reprodução quase exata de “Jesus Andando Através do Campo de Grãos”, uma pintura do artista alemão Johannes Raphael Wehle. A correspondência não era apenas temática, mas estendia-se a detalhes específicos da composição, desde o posicionamento das figuras até os gestos e a iluminação da cena. Era como se Ernetti tivesse simplesmente fotografado o quadro de Wehle e apresentado o resultado como uma janela para o passado bíblico.


Quando confrontado com essas evidências, Ernetti manteve sua versão, argumentando que as semelhanças poderiam ser explicadas pela inspiração divina que guiara tanto o escultor quanto o pintor. Era uma explicação engenhosa, mas que levantava questões ainda mais complexas: se a arte podia antecipar a realidade histórica através da inspiração religiosa, que valor teria a própria tecnologia do Chronovisor?

Outras inconsistências começaram a emergir. Especialistas em física de partículas questionaram os fundamentos teóricos do dispositivo, apontando que a alegada “preservação eletromagnética” de eventos passados contradizia princípios básicos da Termodinâmica e da teoria da informação. A ideia de que ondas sonoras e luminosas pudessem manter coerência informacional por séculos ou milênios era, simplesmente, incompatível com nosso entendimento da natureza física da realidade.

Mais decisivo ainda foi a descoberta de que Ernetti havia demonstrado conhecimento íntimo de “The Dead Past” de Asimov. Em cartas pessoais posteriormente reveladas, o padre fazia referências claras à obra do escritor americano, sugerindo que estava ciente das implicações ficcionais de suas alegações. A linha entre inspiração científica e apropriação literária tornava-se perigosamente tênue.

Durante toda a controvérsia, nem Fermi nem von Braun jamais confirmaram publicamente seu envolvimento no projeto Chronovisor. Fermi, que morreu em 1954, não viveu para ver a popularização das alegações de Ernetti. Von Braun, por sua vez, manteve silêncio absoluto sobre o assunto até sua morte em 1977, apesar das repetidas tentativas de jornalistas e pesquisadores de obter confirmação.

Esse silêncio era, em si mesmo, revelador. Von Braun era notoriamente expansivo sobre seus projetos científicos, frequentemente concedendo entrevistas e escrevendo artigos sobre suas realizações na NASA. Sua recusa em comentar o Chronovisor poderia ser interpretada tanto como evidência de um projeto classificado quanto como desejo de não se associar a uma alegação duvidosa.

O mesmo se aplicava aos demais cientistas mencionados por Ernetti. Nenhum jamais corroborou as alegações do padre, criando um vácuo de credibilidade que apenas alimentava as especulações. Se o projeto era real e altamente classificado, o silêncio fazia sentido. Se era uma fabricação, a ausência de negativas também era compreensível – afinal, negar uma mentira pode, paradoxalmente, dar-lhe mais atenção do que merece.

Em 1994, aos 68 anos, Pellegrino Ernetti estava internado em um hospital de Veneza, lutando contra um câncer terminal. Segundo algumas fontes, foi durante esses últimos dias que o padre teria feito uma confissão devastadora: toda a história do Chronovisor era uma elaborada fabricação. A fotografia de Jesus era de fato baseada na estátua de Collevalenza, e as alegações científicas não passavam de fantasia alimentada por leituras de ficção científica.

Mas até mesmo essa confissão tornou-se motivo de controvérsia. O padre François Brune, amigo próximo de Ernetti e fervoroso defensor da autenticidade do Chronovisor, contestou veementemente a alegada retratação. Segundo Brune, Ernetti estava sedado e sob pressão de autoridades eclesiásticas quando supostamente confessou a farsa. O jornalista alemão Peter Krassa, que havia investigado extensivamente o caso, chegou a similar conclusão, alegando que a Igreja forçara Ernetti ao silêncio para evitar maiores controvérsias.

A própria natureza da confissão levantava questões fascinantes: por que um homem à beira da morte, teoricamente liberto das pressões terrenas, escolheria esse momento para mentir? Ou, de outra forma, por que alguém que havia mantido uma história por décadas escolheria os últimos momentos de vida para revelar a verdade?

A morte de Ernetti em abril de 1994 selou definitivamente o destino do Chronovisor, transformando-o de alegação científica controversa em lenda moderna. Sem evidências físicas, documentação técnica ou testemunhas credíveis, a história permanece suspensa entre a possibilidade extraordinária e a fraude elaborada.

O que talvez seja mais intrigante sobre toda a saga é como ela revela aspectos fundamentais da psique humana diante do desconhecido. O Chronovisor de Ernetti oferecia algo que a humanidade sempre desejou: acesso direto à verdade histórica, livre das interpretações, distorções e lacunas que caracterizam nosso conhecimento do passado. Era a promessa de substituir a fé pela certeza, a especulação pelo testemunho ocular.

Nesse sentido, a história de Ernetti ecoa perfeitamente o conto de Asimov, não apenas em detalhes técnicos, mas em sua exploração das implicações filosóficas de tal tecnologia. Ambas as narrativas – uma declaradamente ficção, outra alegadamente realidade – chegam à mesma conclusão perturbadora: talvez não devêssemos ter acesso total ao passado. Talvez a história deva permanecer parcialmente velada, preservando assim tanto nossa privacidade quanto nossa capacidade de reinterpretação e crescimento.

O Chronovisor, real ou imaginário, permanece como um espelho de nossos desejos mais profundos e nossos medos mais primitivos. Em um mundo onde a tecnologia promete transparência absoluta, a lenda de Pellegrino Ernetti nos lembra que algumas portas, uma vez abertas, podem nunca mais ser fechadas. E talvez isso seja, afinal de contas, uma bênção disfarçada.

No fim, a verdadeira genialidade de Ernetti – consciente ou inconsciente – pode ter sido criar uma história que transcende a distinção entre verdade e ficção, tornando-se uma parábola moderna sobre os limites da curiosidade humana e o preço do conhecimento absoluto. O Chronovisor continua a nos observar do passado, um dispositivo que pode nunca ter existido, mas que capturou algo muito real: nossa eterna fascinação com os mistérios do tempo.

2 comentários em “O padre que viu o passado (SQN)

  1. Dois furos grandes nesse suposto equipamento:

    1 – Como “sintonizar” um momento exato no tempo, mas principalmente no espaço? Para fotografar um rosto seria preciso um ângulo específico, uma iluminação específica, etc… teria que se considerar a rotação da terra, a translação em volta do sol, da galáxia…

    2 – Luz e som são fomas de energia (luz também se comporta como partículas), mas ele também relata ter sentido o CHEIRO, que são moléculas, matéria. E é por isso que nem as nossas TVs mais modernas tem essa funcão.

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  2. Texto muito interessante.Não conhecia essa história.Seria fácil provar essas alegações:Bastaria mostrar o aparelho em ação em uma exibição pública.Para mim foi só armação mesmo.

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